“Bem-Aventurados os que Sofrem Perseguição por Causa da Justiça”

“Justiça”, como já dissemos, significa a atitude justa e reta do homem
para com Deus. O homem “justo”, nos livros sacros, é o homem santo, o
homem crístico, o homem que realizou em alto grau o seu Eu divino pela
experiência mística manifestada na ética. O homem “justo” é o homem que se
guia, invariavelmente, pelos dois grandes mandamentos, o amor de Deus e a
caridade do próximo.
Mas, será possível que alguém sofra perseguição por causa dessa justiça,
por causa da sua santidade?
O Evangelho de Jesus está repleto de afirmações dessa natureza, e a
experiência multissecular o confirma. “Por causa do meu nome sereis odiados
de todos, e chegará a hora em que todo aquele que vos matar julgará prestar
um serviço a Deus. “Arrastarvos-ão perante reis e governadores e sinagogas;
mas não vos perturbeis! Porque o servo não está acima de seu senhor; se a
mim me perseguiram também vos hão de perseguir a vós. “Os inimigos do
homem são os seus companheiros de casa.”
Estamos habituados a pensar e a dizer que esses perseguidores dos
justos são homens maus, perversos, de má-fé; e, de fato, assim acontece
muitas vezes. Entretanto, as mais cruéis perseguições que a história humana
conhece foram perpetradas por homens sinceros e subjetivamente bons, em
nome da verdade e do bem, em nome de Deus e do Cristo. Sobretudo as
igrejas e sociedades religiosas organizadas têm empreendido, e empreendem
ainda, cruzadas e “guerras santas”, trucidando infiéis, queimando hereges,
torturando homens de elevada espiritualidade, excomungando como apóstatas
e perversos muitos dos homens mais puros e santos que o mundo conhece. A
maior parte desses perseguidores não tem má intenção nem consciência
pecadora; agem por um sentimento de dever.
Há duas razões fundamentais por que o homem justo é perseguido por
outros homens individuais ou por sociedades humanas.
1 — Um indivíduo persegue outro indivíduo, não só porque este seja
mau, mas, também, pelo fato de ser bom.
Por quê?
Porque o homem justo aparece como elemento hostil a outro homem
menos justo. A simples presença de um homem mais santo do que eu é, para
mim, uma declaração de guerra, ou, pelo menos, uma permanente ofensa. O
homem espiritual, pelo simples fato de existir, diz silenciosamente a outros:
“Vós devíeis ser como eu, mas não sois, e isto é culpa vossa. “Nenhum homem
espiritual, é claro, diz isto; mas os profanos interpretam deste modo a presença
do homem justo, e atribuem a este a ingrata censura. Ora, ninguém tolera, por
largo tempo, a consciência da sua inferioridade. Enquanto não aparece outro
homem de elevada espiritualidade, pode o homem menos espiritual viver
tranqüilo na sua inferioridade, porque esta não é nitidamente percebida senão
quando polarizada pelo contrário ou por uma espiritualidade superior. Quando
o homem pouco espiritual encontra outro ainda menos espiritual, sente-se ele
relativamente seguro do seu plano, e tem mesmo a tendência instintiva de
fechar os olhos para as virtudes do outro, a fim de poder brilhar mais
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intensamente, ele só, como aquele fariseu, no templo em face do publicano. E
que o homem profano mede o seu valor pelo relativo desvalor dos outros.
Quando então a sua luz é, ou parece ser, mais forte que as luzes dos outros, o
homem profano ou de escassa espiritualidade experimenta um senso de
segurança e tranqüilidade; não tem remorsos da sua pouca espiritualidade nem
se julga obrigado a um esforço especial para subir. Entre cegos, diz o
provérbio, quem tem um olho é rei.
Mas ai desse homem complacentemente satisfeito consigo mesmo, se
lhe aparecer alguém de maior espiritualidade! Logo começa ele a sentir-se
inseguro e inquieto. Em face dessa inquietação, duas atitudes seriam
possíveis: a) o vivo desejo de ser tão espiritual como o outro e o esforço
correspondente a esse desejo; b) uma atitude de despeito e agressividade.
A primeira atitude é a dos homens humildes e sinceros; a segunda é a
dos homens orgulhosos e insinceros consigo mesmos. Os primeiros se tornam
discípulos do homem espiritual, os últimos se tornam seus adversários.
É doloroso para um pigmeu ver-se eclipsado por um gigante.
É desagradável para um impuro ter a seu lado um homem puro.
Se o pigmeu não sente em si a capacidade de crescer; se o impuro não
dispõe da força de se tornar puro, declarará guerra ao gigante e ao puro.
Essa guerra nem sempre se desenrola no plano físico; muitas vezes se
trava no campo moral: o homem menos espiritual descobre no mais espiritual
numerosas manchas, e, esquecido da muita luz que ele irradia, só enxerga, o
despeitado, os pontos escuros que encontra no sol — e acha que não convém
tomar banho de sol, porque há tantas e tão grandes manchas no globo solar.
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2 — No terreno social das organizações eclesiásticas acresce ao
primeiro, outro fator, aparentemente mais justificável: o homem altamente
espiritualizado é sempre uma espécie de exceção da regra, é um pioneiro que
abandonou as velhas estradas conhecidas e batidas pela turbamulta dos
crentes e rasga caminhos novos, “por mares nunca dantes navegados”, por
ignotas florestas, por ínvios desertos que poucos conhecem. Esse homem
ultrapassa, quase sempre, os caminhos tradicionais do passado, e até do
presente, e abre novas rotas para o futuro. Toda e qualquer inovação, por mais
verdadeira, é, no principio, considerada como erro, e até como perigo social.
Ora, é sabido que, no mundo espiritual, todo homem se sente
grandemente inseguro, porque esse mundo lhe é desconhecido, como tudo
que apenas se crê, sem dele ter experiência imediata. Nenhum crente sabe o
que é o reino de Deus assim como um cego de nascença não sabe o que é a
luz, o que são cores, embora tenha decorado as mais verdadeiras teorias sobre
esses assuntos. A única coisa que nos dá certa segurança ao homem
inexperiente é o fato de que milhares e milhões de outros homens trilham
esses mesmos caminhos, já por séculos e milênios, e muitos deles são bons e
relativamente felizes.
De maneira que o fator “massa” e o fator “tradição” nos dão uma espécie
de segurança e firmeza, no meio da insegurança e incerteza que,
naturalmente, experimentamos por entre as trevas ou penumbras da vida
espiritual. E isto nos faz bem.
Quando então aparece um homem que parece não necessitar desses
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elementos de segurança garantidos pela massa e tradição, dá-se uma espécie
de terremoto que abala as instituições antigas. E os que ainda necessitam dos
elementos massa e tradição começam a afastar-se desse revolucionário
iconoclaste, a fim de não perderem o seu senso de segurança. Mesmo na
hipótese de que esse iconoclasta possua verdadeira segurança interior, graças
à sua experiência direta, essa segurança não é transferível aos outros, e assim
é compreensÍvel que estes, não tendo a mesma experiência, prefiram apegarse
firmemente às tradições antigas que a massa professa.
E o arrojado bandeirante do Infinito fica só, ou faz parte de uma
pequenina elite, que não representa 1% da humanidade. Em caso algum pode
esse homem apelar para uma longa tradição no passado; nunca houve grande
massa de homens espirituais que fizesse tradição estratificada, e os poucos
que houve ou há são praticamente desconhecidos da parte da humanidademassa,
que decide pela tradição.
Por isso , as sociedades religiosas organizadas, que contam sempre com
o fator massa e tradição, dão grito de alerta e de alarme, e previnem seus filhos
contra o perigoso inovador, o herege, o demolidor, o apóstata. Quando as
sociedades religiosas possuem suficiente poder físico, eliminam do número dos
vivos o perigoso demolidor das tradições, e isto “pela maior glória de Deus e
salvação das almas”. Quando não possuem esse poder, procuram neutralizar a
ação do herege matando-o moralmente, isolando-o por meio de campanhas
sistemáticas de difamação e calúnia. E como, segundo eles, o fim justifica os
meios, e como o fim é (ou parece ser) bom, todos os meios são considerados
lícitos e bons, mesmo os maiores atentados à verdade, à justiça, à caridade.
Donde se segue que o homem espiritual vive em uma relativa solidão. A
massa não simpatiza com ele se não lhe é positivamente antipático, mantém
pelo menos uma atitude de apatia e desconfiança em face dele.
Para o homem espiritual, porém, o fator “massa” é sobejamente
compensado pelo fator “elite” ou mesmo pelo simples testemunho da sua
consciência em plena solidão.
Existe, aqui na terra, e por toda a parte, a “comunhão dos santos”, isto é,
a misteriosa união de todos os que conhecem e amam a Deus, a fraternidade
branca dos irmãos anônimos formada pelos solitários pioneiros do Infinito. E
eles sabem qué éprofundamente verdadeiro o que o grande Mestre disse:
“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio
deles
Dois ou três — porque nunca serão muitos no mesmo lugar e tempo, os
homens cristificados. E mesmo que sejam mais, nunca deixará de imperar a
misteriosa lei da polaridade ou da trindade; dentro de um grupo maior haverá
sempre essa constelação interna de dois ou três. A grande experiência crística
circulará sempre entre dois ou três, e só mediante essa pequena constelação é
que ela se comunicará ao resto do céu estrelado e às galáxias do universo
espiritual.
No tempo de Jesus eram Pedro, Tiago e João essa tríade espiritual, que
presenciaram o Mestre no seu sofrimento e na sua glória. O total dos discípulos
era doze, quatro vezes três; e, quando um deles falhou, se apressaram os
restantes onze a preencher a lacuna; mas quem designou o substituto de
Iscariotes não foram eles, mas foi o “Espírito Santo”, como referem os livros
sacros. Nenhum homem podia restabelecer o número sagrado quatro vezes
três; só o espírito de Deus. O homem, quando canal puro e veículo idôneo,
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serve de intermediário para canalizar as águas vivas que jorram para a vida
eterna.
Já o grande Pitágoras sabia que três é o número da sacralidade vertical,
e que quatro é o número das realizações horizontais, O número três é a mística
do primeiro mandamento; quatro é a ética do segundo mandamento.
O homem justo é perseguido por causa da sua espiritualidade, tanto
pelos indivíduos menos espirituais, como também pelas sociedades
organizadas que necessitam de massa e tradição para sua sobrevivência; mas,
apesar de tudo, ele vive num ambiente de paz e felicidade, porque está na
“comunhão dos santos”.
“Bem-aventurado... dele é o reino dos céus”. O reino dos céus, porém,
“está dentro de
vos”...

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