sábado, 4 de junho de 2011

O FERREIRO INTRANSIGENTE

Comentávamos o problema da compaixão, quando se abeirou de nós antigo orientador e
narrou, bem humorado:
¯ Conheci um caso interessante na Idade Média.
Em que pequenina aldeia do Velho
Mundo que os séculos já transformaram, jovem ferreiro apaixonou-se pelo rigor da justiça.
Integrando certa facção política, considerava todas as pessoas que lhe não esposassem os
pontos de vista por inimigos a combater.
Atrabiliário e sectarista, imaginava os mais difíceis processos de perseguição aos
adversários. A tolerância representava para ele grave delito. Se alguém não rezasse por sua
cartilha, ficava assinalado a ponto escuro. Disposto a contendas, embora a posição humilde
que desfrutava, sabia complicar a situação dos desafetos, urdindo intrigas e ciladas contra
eles.

Assim é que, certa feita, procurou o juiz que regia a comuna com benevolência e equidade e
propôs-lhe a reconstrução do cárcere. A enxovia desmoronava-se.
Qualquer malfeitor provocava facilmente a evasão. As grades frágeis cediam ao assalto de
qualquer um. Impossível o trabalho da detenção. Era necessário sustar o insulto à polícia.
Oferecia-se, desse modo, para sanar o problema. Daria novo aspecto ao cubículo. Prisão
que fosse prisão.
O magistrado, velho experiente e bondoso, observou:
¯ Meu filho, a justiça deve ser exercida com amor, para que se não converta em
crueldade, porque lá vem um dia em que precisamos ser justiçados por nossa vez.
O moço,porém, insistiu. A cadeia menosprezada não merecia respeito.
Tanto reclamou que atingiu o objetivo a que se proponha.
Recebendo a concessão para reformar o cárcere,esmerou-se quanto pôde. Deu nova feição
às grades. Criou um sistema de cadeados, pelo qual era impossível a escapatória. E no
centro do acanhado recinto levantou pesada coluna de ferro, com algemas laboriosamente
trabalhadas, impedindo a movimentação de quem fosse jungido a semelhante pelourinho.
A idéia foi bem sucedida. O serviço revelou-se tão eficiente que o jovem artífice foi procurado
por autoridades de outros recantos e larga prosperidade abriu-lhe as portas. A novidade
ofereceu-lhe fama e fortuna.
Durante vinte anos, coadjuvado por operários diversos, o nosso ambicioso amigo fabricou
prisões para numerosas cidades do seu tempo. Senhor de vasto patrimônio material,
transferiu residência do vilarejo provinciano para grande metrópole e, certa noite supondo
defender-se, cometeu leve falta que inimigos gratuitos se incumbiram de solenizar.
O antigo ferreiro foi preso, de imediato. Internado, mentalizou a ajuda de companheiros que o
auxiliassem na fuga, mas, assombrado, reconheceu, pela marca dos ferros, que fora
trancafiado num cárcere de sua própria fabricação, sofrendo rigorosa pena que, começando
por acabrunhá-lo, acabou por infligir-lhe a morte.
Terminada a história rápida, fixou-nos de maneira expressiva e rematou:
¯ Somente a compaixão pode salvar-nos, soerguendo-nos do abismo de nossas próprias
faltas. Qualquer punição extremada que receitarmos para os outros será como a prisão do
ferreiro intransigente. Os laços que armarmos contra o próximo serão inevitável flagelo para
nós mesmos.
Logo após, sem dar-nos tempo para qualquer indagação, sorriu com serenidade e seguiu
adiante.

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