Lúcia morava sozinha numa casinha antiga, na esquina da Rua das Amendoeiras.
Aos 68 anos, tinha o cabelo prateado e um olhar que parecia sempre estar em outro tempo — talvez porque parte dela tivesse ficado lá mesmo, no passado.
Quando jovem, sonhava ser pianista. Tocava nas igrejas, nas festas, onde a deixassem.
Mas a vida, caprichosa como sempre, trocou as partituras por boletos, o palco por um emprego formal, e o piano por silêncio.
Mesmo assim, Lúcia nunca deixou de acreditar que a música era uma forma de respirar.
Até o dia em que o fogo levou tudo — a casa, os quadros, o piano que herdara da mãe.
Ficou apenas ela e uma lembrança que doía como cicatriz aberta.
Depois disso, a vizinhança raramente a via sorrir.
Ela vendia flores na praça, calada.
Mas um dia, algo mudou.
Enquanto arrumava suas margaridas, ouviu um som — tímido, trêmulo, desafinado, mas reconhecível: as notas de “Clair de Lune”, de Debussy.
Olhou em volta, surpresa. O som vinha da casa nova da esquina, onde uma família tinha se mudado há pouco.
No quintal, um garoto de uns doze anos dedilhava um piano pequeno, com esforço visível.
Errava, recomeçava, errava de novo.
Lúcia não resistiu.
Aproximou-se devagar, até que ele a viu.
— Desculpa, moça… tô aprendendo ainda.
— Não precisa se desculpar — respondeu ela, sorrindo pela primeira vez em anos. — Tá tocando bonito.
No dia seguinte, levou um caderno e escreveu algumas anotações: posições de dedos, compassos, pausas.
“Pra te ajudar”, disse, deixando o papel no portão.
O menino, encantado, começou a esperar por ela todos os dias.
Logo, Lúcia estava sentada ao lado dele, ensinando o que sabia — o que a vida, mesmo dura, nunca conseguiu tirar.
Os dois criaram uma rotina: ela levava flores e ensinava acordes; ele trazia bolachas e risadas.
E, sem perceber, aquele quintal virou o palco que Lúcia sempre quis ter.
Meses depois, o menino a convidou para seu primeiro recital na escola.
Quando o apresentador anunciou o nome da música, Lúcia quase não acreditou:
“Clair de Lune — dedicado à minha professora da Rua das Amendoeiras.”
As luzes se apagaram.
As notas soaram, doces e precisas.
E as lágrimas, inevitáveis, desceram pelo rosto dela — não de tristeza, mas de gratidão.
Quando a música terminou, o auditório se levantou em aplausos.
E Lúcia sentiu algo que há muito não sentia: pertencimento.
Naquela noite, voltando pra casa, olhou o céu e sussurrou:
“Obrigada, mamãe. A música voltou pra mim.”
✨ E foi assim que a Rua das Amendoeiras voltou a ter som — não o som de um piano antigo, mas o som da esperança recomeçando.

Comentários
Postar um comentário