quinta-feira, 31 de março de 2011

“Bem-Aventurados os Pacificadores”

A palavra latina pacificare, da qual é derivada pacificus, é composta de
dois
radicais (e o mesmo acontece em grego): pax e facere, isto é, “paz” e “fazer”.
Pacificador (em latim: pacificus) é, pois, aquele que faz a paz, é um “fazedor de
paz”, um homem que possui em si a força creadora de estabelecer ou
restabelecer um estado ou uma atitude permanente de paz no meio de
qualquer campo de batalha.
A tradução “pacíficos”, em vez de “pacificadores”, que se encontra em
muitas versões portuguesas, não corresponde ao sentido do original grego
eirenopoíí, nem ao latim pac~fici, porque ambos significam um processo ativo e
dinâmico, e não apenas um estado passivo de paz.
Quem é, pois, verdadeiro pacificador?
Não é, em primeiro lugar, aquele que restabelece a paz entre pessoas ou
grupos litigantes, mas sim aquele que estabelece e estabiliza a paz dentro de si
mesmo. Aliás, ninguém pode ser verdadeiro pacificador de outros se não for
pacificador de si mesmo. Só um autopacificador é que pode ser um alopacificador.
A pior das discórdias, a mais trágica das guerras é o conflito que o
homem traz dentro de si mesmo o conflito entre o ego físico-mental da sua
humana personalidade e o Eu espiritual da sua divina individualidade. Se não
houvesse conflito interior, entre o seu Lúcifer e o seu Lógos, não haveria
conflitos exteriores na família, na sociedade, nas nações, entre povos. Todos
os conflitos externos são filhos de algum conflito interno não devidamente
pacificado. Por isso, é absurdo querer abolir as guerras ou revoluções de fora
as discórdias domésticas no lar ou no campo de batalha, enquanto o homem
não abolir primeiro o conflito dentro da sua própria pessoa.
O grande tratado de paz tem de ser assinado no foro interno do Eu
individual antes de poder ser ratificado no foro externo das relações sociais.
Nunca haverá Nações Unidas, nunca haverá sociedade ou família unida
enquanto não houver indivíduo unido. Pode, quando muito, haver um precário
armistício (que quer dizer “repouso de armas”), mas não uma paz sólida e
duradoura enquanto o individuo estiver em guerra consigo mesmo. Que é um
armistício se não uma trégua, maior ou menor, entre duas guerras? Paz social,
segura e estável, supõe paz individual, firme e sólida.
*
“Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz” — disse o Mestre, em
vésperas da sua morte — não a dou assim como o mundo a dá; dou-vos a
minha paz para que a minha alegria esteja em vós, e seja perfeita a vossa
alegria, e ninguém mais vos tire a vossa alegria.
É este o grande tratado de paz, no santuário da alma. Não é um
armistício precário de cuja
estabilidade se deva temer a cada momento, mas é uma paz firme e
indestrutível, plena de alegria e
felicidade, porque alicerçada sobre a verdade, a “verdade libertadora”.
Essa paz segura e duradoura, porém, só pode existir no homem que
ultrapassou todos os erros e todas as ilusões do velho ego e se identificou com
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a verdade do novo Eu, o homem que descobriu em si o Cristo e o fez triunfar
sobre sua vida.
Esta bem-aventurança é, pois, a apoteose da auto-realização porque o
homem que realiza o seu elemento divino, o seu Cristo interno, entra em um
mundo de firmeza e paz, que se revela constantemente em forma de alegria e
felicidade e se concretiza em benevolência e vontade de servir e de dar. O
homem que encontrou Deus pela experiência mística é, naturalmente, bom e
benévolo com todos os homens e com os seres infra-humanos. A felicidade
interna tem a irresistível tendência de transbordar em benevolência externa e
em uma vontade de servir e dar espontânea e jubilosamente. Quando o
homem émau e desabrido com os outros é porque não tem paz interior e sente
a necessidade de descarregar o excesso da sua infelicidade — “nervosismo”,
na linguagem eufemística de cada dia — em alguém ou em alguma coisa, e os
objetos mais próximos servem de párarraios para essa tensão do homem
infeliz. Propriamente, deveria esse homem ser áspero consigo mésmo, o
principal culpado; mas, como o egoísmo não lhe permite semelhante
sinceridade, são os inocentes ou os menos culpados não raro, até coisas e
animais domésticos alvo dessa irritação do homem intima-mente
desarmonizado consigo mesmo.
Quando o homem tolera a si mesmo, graças a uma profunda paz de
consciência, todas as coisas e pessoas do mundo são toleráveis; mas, quando
o homem, de consciência insatisfeita, não se tolera a si mesmo, nada lhe é
tolerável.
O remédio não está em mudar os objetos, mas em corrigir o sujeito. Isto,
porém, supõe uma sinceridade muito difícil e rara.
*
A verdadeira paz é um carisma divino, uma graça, uma dádiva de Deus,
que é dada a todo homem que se tornar receptivo para receber esse tesouro.
A verdadeira paz não pode ser manufaturada pelo ego humano, porque
esse ego é o autor de todas as discórdias que existem sobre a face da terra.
Só quando esse pequeno ego humano se integrar no grande Eu divino é que
pode surgir uma paz duradoura.
A paz de que fala o divino Mestre e que ele prometeu a seus discípulos
não é algo inerte e passivo, como a não-resistência de uma ovelha em face do
lobo. O amor é uma “violência” espiritual, disse Gandhi, que derrota todos
aqueles que recorrem à violência material do ódio.
Verdade é que o creador da verdadeira paz prefere morrer a matar; mas isto é
apenas uma conseqüência natural da sua atitude; não é a essência da paz. A
verdadeira paz é algo essencialmente ativo e dinâmico; uma exuberante
plenitude vital, e não uma agonizante vacuidade: é uma jubilosa afirmação, e
não uma titubeante negação.
Quem tem firme consciência de possuir a plenitude do ser pode
facilmente renunciar à abundância do ter. Quem é alguém na sua profunda
qualidade vertical, necessita de bem pouco, no plano horizontal do algo, onde
impera o ter. O seu ser e o seu ter estão em razão inversa, como as duas
conchas duma balança, como o zênite e o nadir. Quanto maior é o ser de uma
pessoa, menor é o seu desejo de ter; e, como toda a falta de paz nasce do
desejo do ter, e ter cada vez mais, é lógico que o homem que reduziu ao
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mínimo o seu desejo de ter, não tem motivo para perder a paz.
A paz é, pois, um atributo do ser, é algo qualitativo, algo que tem
afinidade com o EU SOU do homem. O homem que tem plena consciência do
seu divino EU SOU não tem motivo para brigar ou declarar guerra a alguém por
causa dos teres, que desunem os homens profanos. Mesmo que os outros o
tratem com injustiça por causa dos teres, o homem espiritual sabe que todo
esse mundo quantitativo do ter é pura ilusão: ninguém pode ter algo que ele
não é só o nosso ser que é realmente nosso.
Por isso, em vez de brigar por causa da capa que alguém lhe roubou,
esse milionário do ser oferece, tranqüilamente, ao ladrão, também a túnica,
porque nem a capa nem a túnica fazem parte do seu verdadeiro ser. E,
destarte, ele não sofre perda alguma real; perde dois zeros em vez de um zero,
mas a perda de dois zeros (capa e túnica) não é perda maior que a perda de
um zero (só a capa). O profano, precisamente por ser profano, isto é,
analfabeto do real*, corre loucamente atrás do zero da capa que alguém lhe
roubou, mas o iniciado, em vez de reclamar o zero da capa, cede ao amante
desse zero mais o zero da túnica e não sofreu prejuízo algum, porque todos os
objetos são desvalores, apenas o sujeito é que é valor.
Por isso, o homem que chegou ao conhecimento de si mesmo é
invulnerável; ninguém pode prejudicá-lo, ninguém pode ofendê-lo, ninguém
pode empobrecê-lo, ninguém lhe pode infligir perda de espécie alguma, uma
vez que ninguém pode obrigá-lo a perder o que ele é, e aquilo que ele tem não
o enriquece nem a sua perda o empobrece.
A paz nasce, portanto, de uma profunda sabedoria, do conhecimento da
verdade sobre si mesmo. Quem conhece essa verdade é livre de todo o ódio,
tristeza, rancor, senso de perda e frustração.
*
Uma pessoa profundamente harmonizada em si mesma irradia harmonia
ao redor de si e satura dessa imponderável e benéfica radiação, todas as
coisas.
As suas auras benéficas envolvem tudo em um halo de serenidade e
bem-estar, de fascinante leveza e luminosidade, que atuam, imperceptível,
porém, seguramente, sobre outras pessoas receptivas.
O homem que estabeleceu a paz de Deus em sua alma é um poderoso
fator para restabelecer a paz em outros indivíduos, e, através destes, na
sociedade. Não é necessário que fale muito em paz,
* Verdade, verdadeiro N. do E.
que aduza eruditos argumentos propace — basta que ele mesmo seja uma
fonte abundante e um veemente foco de paz.
O filósofo místico norte-americano Émerson disse, certa vez, a um
homem que falava muito em paz, mas não possuía paz dentro de si: “Não
posso ouvir o que dizes, porque aquilo que és troveja muito alto.”
Quem não é pacificado dentro de si mesmo, não pode ser pacificador fora
de si.
*
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A conquista definitiva e sólida da paz da alma é fruto de uma grande
guerra, guerra que o homem declara a si mesmo, isto é, a seu velho ego. “O
reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o tomam de assalto.
Isto é linguagem bélica! O homem tem de lutar arduamente para
conquistar a paz. É necessário cruzar misteriosa fronteira dentro de nós para
descobrirmos o “tesouro oculto” e a “pérola preciosa” do nosso verdadeiro Eu
divino.
Deus”.
*
Os pacificadores serão chamados “filhos de Deus é a paz eterna, infinita,
absoluta; não a paz da inércia, fraqueza e vacuidade mas a paz da dinâmica,
da força, da plenitude. Nele não há discórdia, luta, conflito; e quanto mais o
homem se aproxima de Deus, pela compreensão e pelo amor, tanto mais a sua
vida se assemelha à vida divina pela paz e serenidade. O homem que fez
definitivo tratado de paz consigo mesmo irradia uma atmosfera de calma e
felicidade que contagia a todos os que forem suficientemente suscetíveis para
perceber essas auras pacificantes.
Os primeiros discípulos de Jesus, referem os Atos dos Apóstolos, eram
“todos um só coração e uma só alma”; viviam em paz e harmonia e tomavam
as suas refeições em comum, na alegria e simplicidade do seu coração; nem
havia entre eles um só indigente, porque os que possuíam demais davam do
seu supérfluo aos que tinham de menos.
Destarte, pela paz individual, estava solucionado o problema da paz social.

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