domingo, 31 de julho de 2011

APUROS DE UM MORTO

Quando Apolinário Rezende acordou, além da morte, viu-se terrivelmente sacudido por estranha
emoção.
Ouvia a esposa, Dona Francina, a chamá-lo em gritos estertorosos.
E qual se fosse transportado a casa por guindaste magnético, reconheceu-se, de chofre, diante
dela, que se descabelava chorosa.
- “Ingrato! Ingrato!” – era o que a viúva dizia em pensamento, embora apenas tartamudeasse
interjeições lamentosas com a boca.

Julgando no corpo de carne, Rezende, em vão, se fazia sentir.
Gritava pela companheira. Pedia explicações.
Esmurrava a mesa em que a senhora apoiava os cotovelos.
Dona Francina, entretanto, procedia como quem lhe ignorava a presença.
O infeliz, no primeiro instante, julgou-se dementado. Acreditava em pesadelo e queria retornar à
vida comum, despertar...
Beliscava-se inutilmente.
Nisso, escutou o próprio nome no andar térreo.
Despencou-se e encontrou Maria Iza, a copeira que se habituara a estimar como sendo sua
própria filha, em conversação discreta com o advogado que lhe era amigo íntimo.
O Dr. Joaquim Curado ouvia, atento a moça, que lhe confidenciava uma infâmia.
A empregada, que sempre lhe recolhera a melhor atenção, não se pejava de acusá-lo, afirmando
que o pequeno Samuel, o menino que lhe nascera, quatro anos antes, do coração de mãe
solteira, era filho dele, Rezende. A serviçal, no extremo da calúnia, dramatizava em pranto. Dizia
despudorada, que seu filhinho Samuel não podia privar-se da herança, que ela, em outros
tempos, vivia sofrendo injuriosas cenas de ciúme, por parte da patroa, e que estava agora
resolvida a colocar a questão em pratos limpos.
Apolinário cerrou os punhos e dispunha-se a esbofeteá-la, quando o causídico asseverou: “Bem,
desde que o Rezende morreu...”
O pobre Espírito liberto sofreu tremendo choque.
Morrera então? Que significava tudo aquilo?
Sentia-se louco... Gritou desesperado, lembrando fera aguilhoada no circo, mas os dois
interlocutores nem de leve lhe perceberam a reação, e o entendimento continuo...
Chorando copiosamente, Apolinário ficou sabendo que o inventário dos seus bens seguia em
meio, que Maria Iza alegava-se seduzida por ele e exigia mais de dois milhões de cruzeiros,
parte igual ao montante que se reservava a cada um de seus filhos.
O Dr. Joaquim falava em exame de sangue e pedia provas.
A moça notificou que Renato, o filho caçula de Dona Francina, fora testemunha da experiência
infeliz a que se submetera, em acedendo às tentações que lhe haviam movidas pelo morto.
Aterrado, Rezende viu seu próprio filho mais novo entrar, a chamado, no parlatório doméstico,
apoiando a invencionice.
O jovem, que ultrapassara os vinte e dois de idade, preocupava-o sempre, pelo caráter leviano;
contudo, não foi sem espanto que passou a escutá-lo, confirmando a denúncia.
Perante o advogado, surpreendido, Renato anunciou que simplesmente tocado pela compaixão,
deliberara ajudar Maria Iza, declarando que o pai, pilhado por ele em vários encontros com ela,
resolvera confiar-lhe a verdade, salientando que, um dia, quando viesse a falecer, o menino
Samuel não devia ser esquecido, de vez que lhe devia a paternidade.
Rezende, tomado de repugnância, desmentia tudo, até que lhe pareceu ouvir os pensamentos do
filho, compreendendo, por fim, que Renato se mancomunara com a copeira, de modo a
senhorear metade da importância que a ela fosse atribuída pela Justiça.
Entendeu a chantagem.
O rapaz pretendia o maior quinhão e, para isso, não vacilava enxovalhar-lhe o nome.
Abatido, procurou Reinaldo, o filho mais velho, moço de comportamento exemplar; entretanto, foi
achá-lo no gabinete, conformado com a situação. O irmão desfechara habilmente o golpe e o
primogênito preferia perder parte da herança a desrespeitar a memória do pai.
Voltou Rezende ao quarto da esposa e debalde quis confortá-la.
Dona Francina ensopara o lenço de lágrimas. Não chorava tanto o dinheiro de que deveria
dispor. Lastimava a suposta infidelidade do falecido marido. Recordava todos os dias felizes, em
que ambos haviam desfrutado confiança perfeita... Era preciso ser desumano para que lhe
mentisse, qual o fizera, dentro do próprio lar. Ansiava conservá-lo puro, na lembrança, viver o
resto da existência preparando-se para reencontrá-lo; entretanto...
Esforçava-se Rezende para consolá-la, a procurar em si mesmo a razão por que sofria
semelhante prova, quando lhe ocorreu um estalo na consciência.
Via-se recuar, recuar...
Sim, sim, Maria Iza recebera dele tão somente considerações respeitosas; contudo, Julieta
surgia-lhe agora... Fora-lhe a companheira da juventude, quarenta anos antes... Menina de
condição modesta agüentara-lhe a ingratidão. Cedera aos seus caprichos de moço impulsivo e
passara a aguardar-lhe um filhinho, confiando no casamento. Examinando, porém, as próprias
conveniências obrigara Julieta a sujeitar-se a vergonhoso processo abortivo e, em seguida, ao
vê-la frustrada, abandonou-a na vala do meretrício.
Rezende, atormentado em dolorosas reminiscências, inquiria a si próprio se a calúnia de Maria
Iza seria a resposta do destino ao sarcasmo em que lançara Julieta... Onde encontrar a vítima
de outra época? Por outro lado, ali estava Dona Francina, a reclamar-lhe assistência, e Maria Iza,
a quem devia perdoar a seu turno.
Tateava o crânio em fogo.
Atravessava o primeiro dia de consciência acordada, depois da morte, e parecia estar no ínfero
mental, desde muito tempo.
Caiu a noite e Rezende permaneceu aflito junto da esposa, tentando em vão, falar-lhe durante o
sono...
Manhã cedo, Dona Francina levantou-se, orou à frente da própria imagem dele, na foto de
cabeceira, tomou grande ramo de flores e saiu na direção de um templo.
Apolinário seguiu-a, reconhecendo emocionado, que a esposa encomendara um ofício religioso,
a benefício da sua felicidade.
Findas as preces, Dona Francina tocou para o cemitério.
Só então Rezende veio saber que a leal companheira comemorava o sexto mês de sua partida.
Cento e oitenta e três dias de inconsciência na vida espiritual!
Assombrado, fitou a esposa, que se ajoelhara à frente do seu próprio túmulo. Entre angustiado e
curioso, inclinou-se para a lápide e soletrou espantadiço:
“Aqui jaz Apolinário Rezende.” E, em letras menores: “Orai pelo descanso eterno de sua alma”.
Quando leu as palavras “descanso eterno”, Rezende passou a refletir sobre as agonias morais a
que era submetido, desde a véspera, e, embora sentindo imenso desejo de chorar esqueceu a
quietude do campo santo e desferiu, em desespero, enorme gargalhada...

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