sábado, 23 de julho de 2011

DA JUSTIÇA : VERDUGO VÍTIMA

Irmão X
O rio transbordava.
Aqui e ali, na crista espumosa da corrente pesada, boiavam animais mortos os
deslizavam toras e ramarias.
Vazantes em torno davam expansão ao crescente lençol de massa barrenta.
Famílias inteiras abandonavam casebres, sob a chuva, carregando aves
espantadiças, quando não estivessem puxando algum cavalo magro.
Quirino, o jovem barqueiro, que vinte e seis anos de sol no sertão haviam
enrijado de todo, ruminava plano sinistro.
Não longe, em casinhola fortificada, vivia Licurgo, conhecido usurário das
redondezas.
Todos o sabiam proprietário de pequena fortuna a que montava guarda,
vigilante.
Ninguém, no entanto, poderia avaliar-lhe a extensão, porque, sozinho,
envelhecera e, sozinho, atendia às próprias necessidades.
- “O velho – dizia Quirino de si para consigo – será atingido na certa. É a
primeira vez que surge uma cheia como esta. Agarrado aos próprios haveres, será levado
de roldão... E se as águas devem acabar com tudo, por que não me beneficiar? O homem
já passou dos setenta... Morrerá a qualquer hora. Se não for hoje, será amanhã, depois
de amanhã... E o dinheiro guardado? Não poderia servir para mim, que estou moço e
com pleno direito ao futuro?...”
O aguaceiro caia sempre, na tarde fria.
O rapaz, hesitante, bateu à porta da choupana molhada.
- “Seu” Licurgo! “Seu” Licurgo!
E, ante o rosto assombrado do velhinho que assomara à janela, informou:
- Se o senhor não quer morrer, não demore. Mais um pouco de tempo e as
águas chegarão. Todos os vizinhos já se foram...
- Não, não... – resmungou o proprietário -, moro aqui há muitos anos. Tenho
confiança em Deus e no rio... Não sairei.
- Venho fazer-lhe um favor...
- Agradeço, mas não sairei.
Tomado de criminoso impulso, o barqueiro empurrou a porta mal fechada e
avançou sobre o velho, que procurou em vão reagir.
- Não me mate, assassino!
A voz rouquenha, contudo, silenciou nos dedos robustos do jovem.
Quirino largou para um lado o corpo amolecido, como traste inútil, arrebatou
pequeno molho de chaves do grande cinto e, em seguida, varejou todos os escaninhos...
Gavetas abertas mostravam cédulas mofadas, moedas antigas e diamantes,
sobretudo diamantes.
Enceguecido de ambição, o moço recolhe quanto acha.
A noite chuvosa descera completa...
Quirino toma os despojos da vítima num cobertor e, em minutos breves, o
cadáver mergulha no rio.
Após, volta à casa despovoada, recompõe o ambiente e afasta-se, enfim,
carregando a fortuna.
55
Passado algum tempo, o homicida não vê que uma sombra se lhe esgueira à
retaguarda.
É o Espírito de Licurgo, que acompanha o tesouro.
Pressionado pelo remorso, o barqueiro abandona a região e instala-se em
grande cidade, com pequena casa comercial, e casa-se, procurando esquecer o próprio
arrependimento, mas recebe o velho Licurgo, reencarnado, por seu primeiro filho...
-*-
Se queres viver contente
No doce clima da paz,
Nunca dês um passo à frente,
Deixando culpas atrás.
Souza Lobo
-*-
Se queres felicidade
No campo que te rodeia,
Nunca entreteças teu ninho
Em galho de dor alheia,
Fócion Caldas
-*-
O dever possui as benções da confiança, mas a dívida tem os fantasmas da
cobrança.
André Luiz

Nenhum comentário:

Postar um comentário