De algum modo, resignara-se com os tormentos que lhe
assediavam o coração, porque fizera por merecê-los, bem o reconhecia. Despojara
viúvas paupérrimas, perseguira órfãos desprotegidos e provocara a falência de
homens honestos; faltara a princípios comezinhos de caridade, praticara a usura
e subornara consciências frágeis. Sempre decidido a valer-se do fascínio do
ouro, aproveitara de muita gente invigilante e inclinada ao mal, a serviço da
ambição que lhe era própria. Receando o futuro, amealhara consideráveis haveres
para os filhos; rodeara-os de vantagens e facilidades econômicas, à custa do
angustiado suor dos humildes, por ele convertidos em escravos sofredores. Em
suma, fora cruel e fazia jus à punição. Entretanto, não se conformava com a
impossibilidade de avistar-se com a família. Porque não voltar à Terra para
renovar a concepção da mulher e dos filhos? A companheira sempre fora fiel às
suas recomendações. Se pudesse falar-lhe, corrigiria tudo a tempo. Todavia, Pai
Abraão não lhe proporcionara qualquer esperança.
Refletia, amargurado,
consigo mesmo, quando surgiu alguém no seio das sombras. A princípio, não
reconhecera o recém-chegado, mas, depois de um abraço, o visitante
exclamou:
– Não se lembra?
Retribuiu emocionadamente.
Recordava-se, agora. Aquele era Benjamim, filho de Habacuc, que o precedera no
túmulo. Espantava-o a surpresa do reencontro. Benjamim, tanto quanto ele
próprio, fora usurário, de coração frio e duro. O manto roto denunciava-lhe a
penosa situação e a cinza que lhe cobria as mãos, o rosto e os cabelos davam a
idéia de que o mísero emergia do bojo de uma cratera.
Terminadas as
saudações da hora, o Rico humilhado expôs-lhe o caso pessoal. Conformava-se com
o purgatório tenebroso, no reconhecimento de suas culpas, contudo desesperava-se
pela impossibilidade de voltar a casa, para relacionar a verdade dos
fato.
O outro, porém, após ouvi-lo pacientemente, assegurou:
– Não
vale a pena inquietar-se. Voltei e nada consegui.
– Voltou? – inquiriu o
novo condenado, deixando transparecer, na voz, um raio de esperança.
–
Sim.
– E chegou a visitar sua casa, sua mulher, seus filhos, seus servos,
suas propriedades, suas terras, seus jumentos, seus camelos, seus bois?
–
Sim.
– Visitou o templo?
– Visitei.
– Tornou a cruzar
nossos campos?
– Tornei.
O Rico chegou a olvidar as aflições do
momento e, contemplando o interlocutor, admirado, prosseguiu:
– E os
familiares? reconheceram-no?
O interpelado entrou em silêncio. Algumas
lágrimas umedeceram-lhe os olhos sombrios.
Instado pelo amigo, informou,
com desapontamento:
– Visitei a família, detive-me nas propriedades que
julguei me pertencessem, rendi homenagem aos tesouros de nossa raça, mas ninguém
me reconheceu. Decorridos alguns dias sobre a morte do meu corpo,
desarmonizaram-se meus filhos por questões da herança que lhes deixei. Rúben
amputou o braço de Eliazar numa cena de sangue, Esaú amaldiçoou os irmãos e
entregou-se ao vinho pela ausência do trabalho e Simeão enlouqueceu no vício.
Minha esposa, não obstante a idade, apaixonou-se por um rico mercador de tapetes
que se assenhoreou do nosso dinheiro e das preciosidades domésticas que me eram
mais caras, conduzindo-a para Eades. Minhas terras de Gaza foram vendidas a
qualquer preço a libertos romanos, meus camelos foram entregues, a trôco de
reduzidas moedas, a velhacos negociantes do deserto, meus bois foram mortos,
meus jumentos dispersos. Alguns de meus servos fugiram espancados, enquanto
outros foram vendidos para Chipre. Minhas propriedades rurais mergulharam no
mato, caindo no abandono e entregues a criadores de cavalos e
porcos.
Mostrou o Rico uma careta de angústia e perguntou:
– Mas a
mulher e os filhos não o reconheceram,
– Visitei-os à noite, para
conversarmos a sós, no entanto expulsaram-me em desespero, insistindo para que
eu descesse para sempre aos infernos. Em vão procurei fazer insinuar-me entre
eles. Não acreditaram na minha presença e fizeram-se surdos às minhas
palavras.
Desencantado, o Rico perguntou:
– Não fez reclamações
aqui? não rogou o socorro de Pai Abraão?
Voltou-se o companheiro,
explicando gravemente:
– Pedi o amparo dos mensageiros de Jeová,
entretanto, em nome dEle, nosso Eterno Senhor, esclareceram-me que a obra era
minha, que nunca fui verdadeiramente esposo de minha mulher e pai de meus filhos
nem amigo dos cooperadores e dos animais que me serviam diariamente. Jamais
auxiliara os meus na aquisição dos valores positivos do espírito imortal e nem
criara nas propriedades de que fui mordomo infiel o ambiente de amor e harmonia,
calma e confiança que Jeová, em vão, esperou de mim. Apegara-me simplesmente à
usura, ao egoísmo, à admiração e culto de mim mesmo, dilatando a vaidade de
minha dominação indébita.
E concluiu, com tristeza :
– Por isso,
mereci a ironia da sorte e a incompreensão dos meus.
O Rico ouviu,
meditou, consultou as próprias reminiscências e, erguendo os braços para o alto,
exclamou:
– Glória a Pai Abraão que não permitiu meu regresso à Terra e
me deu a sede angustiosa e o fogo consumidor para que sarem as feridas de
minhalma!
E, resignado, deitou-se na cinza quente do purgatório,
esperando o futuro.
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