1º — Fontes das provas sobre a natureza do Cristo
A questão da
natureza do Cristo foi debatida desde os primeiros séculos do Cristianismo
e pode-se dizer que ainda não se acha solucionada, pois que continua a ser
objeto de discussão. Foi a divergência das opiniões sobre este ponto que
deu origem à maioria das seitas que dividiram a Igreja há dezoito séculos,
sendo de notar-se que todos os chefes dessas seitas foram bispos ou
membros titulados do clero. Eram, por conseguinte, homens esclarecidos,
muitos deles escritores de talento, abalizados na ciência teológica, que
não achavam concludentes as razões invocadas a favor do dogma da
divindade do Cristo. Entretanto, como hoje, as opiniões se firmaram mais
sobre abstrações do que sobre fatos. Sobretudo, o que se procurou foi
saber o que o dogma continha de plausível, ou de irracional, deixando-se,
geralmente, de um lado e de outro, de assinalar os fatos capazes de
lançar sobre a questão uma luz decisiva.
Mas, onde
encontrar esses fatos, senão nos atos e nas palavras de Jesus?
Nada tendo Ele
escrito, seus únicos historiadores foram os apóstolos que, tampouco
escreveram coisa alguma quando o Cristo ainda vivia. Nenhum historiador
profano, seu contemporâneo, havendo falado a seu respeito, nenhum
documento mais existe, além dos Evangelhos, sobre a sua vida e a sua
doutrina. Aí somente é que se há de procurar a chave do problema. Todos os
escritos posteriores, sem exclusão dos de S. Paulo, são apenas, e não
podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de
opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que, em caso algum,
poderiam ter a autoridade da narrativa dos que receberam diretamente do
Mestre as instruções.
Sobre esta
questão, como sobre as de todos os dogmas, em geral, o acordo entre os
Pais da Igreja e outros escritores sacros não seria de invocar-se como
argumento preponderante, nem como prova irrecusável a favor da opinião de
uns e outros, uma vez que nenhum deles citou um só fato, fora do
Evangelho, concernente a Jesus; que nenhum deles descobriu documentos
novos que seus predecessores desconhecessem.
Os autores
sacros nada mais conseguiram do que girar dentro do mesmo círculo,
produzindo apreciações pessoais, deduzindo corolários acordemente com seus
pontos de vista, comentando sob novas formas e com maior ou menor
desenvolvimento as opiniões contrárias às suas. Pertencendo ao mesmo
partido, tiveram todos de escrever no mesmo sentido, senão nos mesmos
termos, sob pena de serem declarados heréticos, como o foram Orígenes e
tantos mais. Naturalmente, a Igreja só incluiu no número dos seus Pais os
escritores ortodoxos, do seu ponto de vista; somente exalçou, santificou
e colecionou aqueles que lhe tomaram a defesa, ao passo que repudiou os
outros e lhes destruiu quanto pôde os escritos. Nada, pois, de concludente
exprime o acordo dos Pais da Igreja, visto que formam uma unanimidade
arranjada a dedo, mediante a eliminação dos elementos contrários. Se se
fizesse um confronto de tudo que foi escrito pró e contra, difícil se
tornaria dizer para que lado se inclinaria a balança.
Isto nada tira
ao mérito pessoal dos sustentadores da ortodoxia, nem ao valor que
demonstraram como escritores e homens conscienciosos. Sendo advogados de
uma mesma causa e defendendo-a com incontestável talento, haviam
forçosamente de adotar as mesmas conclusões. Longe de intentarmos
apontá-los no que quer que fosse, apenas quisemos refutar o valor das
conseqüências que se pretende tirar do acordo de
suas opiniões.
No exame, que
vamos fazer, da questão da divindade do Cristo, pondo de lado as
sutilezas da escolástica, que unicamente serviram para tudo embaralhar sem
esclarecer coisa alguma, apoiar-nos-emos exclusivamente nos fatos que
ressaltam do texto do Evangelho e que, examinados friamente,
conscienciosamente e sem espírito de partido, superabundantemente facultam
todos os meios de convicção que se possam desejar.
Ora, entre esses
fatos, outros não há mais preponderantes, nem mais concludentes, do que
as próprias palavras do Cristo, palavras que ninguém poderá refutar, sem
infirmar a veracidade dos apóstolos. Pode-se interpretar de diferentes
maneiras uma parábola, uma alegoria; mas, afirmações precisas, sem
ambigüidades, repetidas cem vezes, não poderiam ter duplo sentido. Ninguém
pode pretender saber melhor do que Jesus o que ele quis dizer, como
ninguém pode pretender estar mais bem informado do que ele sobre a sua
própria natureza. Desde que ele comenta suas palavras e as explica para
evitar todo equívoco, é a ele que devemos recorrer, a menos lhe neguemos a
superioridade que lhe é atribuída e nos sobreponhamos à sua própria
inteligência. Se ele foi obscuro em certos pontos, por usar de linguagem
figurada, no que concerne à sua pessoa não há equívoco possível. Antes de
examinar as palavras, vejamos os atos.
2º — Os milagres provam
a divindade do Cristo?
Segundo a
Igreja, a divindade do Cristo está firmada pelos milagres, que
testemunham um poder sobrenatural. Esta consideração pode ter tido certo
peso numa época em que o maravilhoso era aceito sem exame; hoje, porém,
que a Ciência levou suas investigações até às leis da Natureza, há mais
incrédulos do que crentes nos milagres, para cujo descrédito não
contribuíram pouco o abuso das imitações fraudulentas e a exploração que
dessas imitações se há feito. A fé nos milagres foi destruída pelo próprio
uso que deles fizeram, donde resultou que muitas pessoas consideram agora
os do Evangelho como puramente lendários.
A própria
Igreja, aliás, tira aos milagres todo o alcance como prova da divindade do
Cristo, declarando que o demônio os pode operar tão prodigiosos quanto
aqueles outros. Se tal poder tem o demônio, evidente se torna que os fatos
desse gênero carecem em absoluto de caráter exclusivamente divino. Se ele
pode fazer coisas espantosas, capazes até de iludir os eleitos, como
poderão simples mortais distinguir os bons milagres dos maus? Não será de
temer que, observando fatos similares, confundam Deus e Satanás?
Dar a Jesus
semelhante rival em habilidade é grande desazo; mas, em matéria de
contradições e de inconseqüências, não se consideravam as coisas com
muita atenção numa época em que para os fiéis seria um caso de consciência
o pensarem por si mesmos e discutirem o menor artigo que se lhes impusesse
à crença. Não se contava então com o progresso e ninguém cuidava de que
pudesse ter fim o reinado da fé cega e ingênua, reinado cômodo, qual o do
bel-prazer. O papel tão preponderante que a Igreja se obstinou em
atribuir ao demônio produziu conseqüências desastrosas para a fé, à medida
que os homens se foram sentindo capazes de ver com seus próprios olhos.
Depois de ter sido explorado com êxito durante algum tempo, ele se tornou
o alvião posto no velho edifício das crenças e uma das causas da
incredulidade. Pode dizer-se que a Igreja, com o tomá-lo por auxiliar
indispensável, alimentou em seu seio aquele que se voltaria contra ela e
lhe minaria os fundamentos.
Outra
consideração não menos grave é a de que os fatos milagrosos não constituem
privilégio exclusivo da religião cristã. Não há, com efeito, religião
alguma, idólatra ou pagã, que não tenha seus milagres tão maravilhosos e
tão autênticos para os respectivos adeptos, quanto os do Cristianismo. E a
Igreja se privou do direito de os contestar, desde que atribuiu às
potências infernais o poder de os operar.
No sentido
teológico, o caráter essencial do milagre é o de ser uma exceção aberta
nas leis da Natureza, o que, conseguintemente o torna inexplicável
mediante essas mesmas leis. Deixa de ser milagre um fato, desde que possa
explicar-se e que se ache ligado a uma causa conhecida. Desse modo foi que
as descobertas da Ciência colocaram no domínio do natural muitos efeitos
que eram qualificados de prodígios, enquanto se lhes desconheciam as
causas. Mais tarde, o conhecimento do princípio espiritual, da ação dos
fluídos sobre a economia geral, do mundo invisível dentro do qual vivemos,
das faculdades da alma, da existência e das propriedades do perispírito,
facultou a explicação dos fenômenos de ordem Psíquica, provando que esses
fenômenos não constituem, mais do que os outros, derrogações das leis da
Natureza, que, ao contrário, decorrem quase sempre de aplicações destas
leis. Todos os efeitos do magnetismo, do sonambulismo, do êxtase, da dupla
vista, do hipnotismo, da catalepsia, da anestesia, da transmissão do
pensamento, a presciência as curas instantâneas as possessões, as
obsessões, as aparições e transfigurações, etc., que formam a quase
totalidade dos milagres do Evangelho, pertencem àquela categoria de
fenômenos.
Sabe-se agora
que tais efeitos resultam de especiais aptidões e disposições
psicológicas; que se hão produzido em todos os tempos e no seio de todos
os povos e que foram considerados sobrenaturais pela mesma razão que todos
aqueles cuja causa não se percebia. Isto explica por que todas as
religiões tiveram seus milagres, que mais não são que fatos naturais,
quase sempre, porém, ampliados até ao absurdo pela credulidade e reduzidos
agora ao seu justo valor pelos conhecimentos atuais, que permitem se
destaque deles a parte devida à lenda.
A Possibilidade da maioria
dos fatos que o Evangelho cita como operados por Jesus se acha hoje
completamente demonstrada pelo Magnetismo e pelo Espiritismocomo
fenômenos naturais. Pois que eles se produzem às nossas vistas, quer
espontaneamente, quer quando provocados, nada há de anormal em que Jesus
possuísse faculdades idênticas às dos nossos magnetizadores, curadores,
sonâmbulos, videntes, médiuns, etc. Do momento em que essas mesmas
faculdades se encontram, em diferentes graus, numa multidão de indivíduos
que nada têm de divino, até em heréticos e idólatras, elas não implicam,
de maneira alguma, a existência de uma natureza sobre-humana.
Se o próprio
Jesus qualifica de milagres os seus atos, é que nisto, como em muitas
outras coisas, lhe cumpria apropriar sua linguagem aos conhecimentos dos
seus contemporâneos. Como poderiam estes apreender os matizes de uma
palavra que ainda hoje nem todos compreendem? Para o vulgo, eram milagres
as coisas extraordinárias que ele fazia e que pareciam sobrenaturais,
naquele tempo e mesmo muito tempo depois. Ele não podia dar-lhes outro
nome. Fato digno de nota é que se serviu dessa denominação para atestar a
missão que recebera de Deus, segundo suas próprias expressões, porém nunca
se prevaleceu dos milagres para se apresentar como possuidor do poder
divino. (1)
Importa, pois,
se risquem os milagres do rol das provas sobre que se pretende fundar a
divindade da pessoa do Cristo. Vejamos agora se as encontramos em suas
palavras.
(1) Para completo desenvolvimento da questão dos milagres,
veja-se A Gênese segundo o Espiritismo, caps. 13º e seguintes, onde se
acham explicados, por meio das leis naturais, todos os milagres do
Evangelho.
3º — As palavras de
Jesus provam a sua divindade?
Dirigindo-se a
alguns de seus discípulos que disputavam para saber qual dentre eles era
o maior, disse-lhes ele, chamando para junto de si uma criança:
“Quem quer que
me receba, recebe aquele que me enviou, “porqüanto aquele que for o menor
entre todos vós será o “maior de todos.” (São Lucas, 9:48.)
“Quem quer que
receba em meu nome a uma criancinha “como esta, a mim me recebe; e aquele
que me recebe não “me recebe a mim, mas recebe aquele que me enviou.” (São
Marcos, 9:37.)
“Jesus lhes
disse então: Se Deus fosse vosso Pai, vós “me amaríeis, porque foi de Deus
que saí e foi de sua parte “que vim; pois, não vim de mim mesmo, foi ele
que me enviou.” (São João, 8:42.)
“Jesus então
lhes disse: Ainda estou Convosco por um “pouco de tempo e vou em seguida
para aquele que me enviou.” (São João, 7:33.)
“Aquele que vos
ouve a mim me ouve; aquele que vos “despreza a mim me despreza; e aquele
que me despreza, “despreza aquele que me enviou.” (São Lucas, 10:16.)
O dogma da
divindade de Jesus se baseou na igualdade absoluta entre a sua pessoa e
Deus, pois que ele próprio é Deus. É este um artigo de fé. Ora, estas
palavras, que Jesus tantas vezes repetiu: Aquele que me enviou, não só
comprovam uma dualidade de pessoas, mas também, como já o dissemos,
excluem a igualdade absoluta entre elas, porquanto aquele que é enviado
necessariamente está subordinado ao que envia. Com o obedecer, aquele
pratica um ato de submissão. Um embaixador, falando do seu soberano,
dirá: Meu senhor, aquele que me envia; mas, se quem vem é o soberano em
pessoa, falará em seu próprio nome e não dirá: Aquele que me enviou, visto
que ele não pode enviar-se a si mesmo. Jesus o disse em termos
categóricos: Não vim de mim mesmo; foi ele quem me enviou.
Estas palavras:
Aquele que me despreza, despreza aquele que me enviou, não implicam
absolutamente a igualdade, nem, ainda menos, a identidade. Em todos os
tempos, o insulto a um embaixador foi considerado como feito ao próprio
soberano. Os apóstolos tinham a palavra de Jesus, como este a de Deus.
Quando lhes ele diz: Aquele que vos ouve a mim me ouve, certamente não
queria dizer que seus apóstolos e ele fossem uma só e a mesma pessoa,
igual em todas as coisas.
A dualidade das
pessoas, assim como o estado secundário e de subordinação de Jesus com
relação a Deus, ressaltam, ao demais, sem equívoco possível, das seguintes
passagens:
“Fostes vós que
permanecestes sempre firmes comigo “nas minhas tentações. — Eis por que
vos preparo o Reino, “como meu Pai mo preparou, a fim de que comais e
bebais à minha mesa no meu reino e que estejais sentados “em tronos, para
julgar as doze tribos de Israel.” (S. Lucas, 22:28 a 30.)
“De mim digo o
que vi junto de meu Pai; e vós, vós “fazeis o que ouvistes de vosso pai.”
(S. João, 8:38.)
“Ao mesmo tempo,
apareceu uma nuvem que os cobriu “e dessa nuvem saiu uma voz que fez se
ouvissem estas palavras: Este é meu filho bem-amado; escutai-o.”
(Transfiguração: S. Marcos, 9:7.)
“Ora, quando o
filho do homem vier em sua majestade, acompanhado de todos os anjos,
assentar-se-á no trono “de sua glória; — e, achando-se reunidas todas as
nações, “separará umas das outras, como o pastor separa as ovelhas “dos
bodes; — colocará as ovelhas à sua direita e os bodes “à sua esquerda. —
Então, o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, vós que fostes
abençoados por meu Pai, “possuir o reino que vos foi preparado desde o
começo do “mundo.” (S. Mateus, 25:31 a 34.)
“Aquele que me
confessar e me reconhecer diante dos “homens, eu também o reconhecerei e
confessarei diante de “meu Pai que está nos céus; — aquele que me
renunciar “diante dos homens, também eu mesmo o renunciarei diante “de meu
Pai que está nos céus.” (S. Mateus, 10:32 a 33.)
“Ora, eu vos
declaro que aquele que me confessar e me “reconhecer perante os homens, o
filho do homem também “o reconhecerá perante os anjos de Deus; — mas, se
algum “me repudiar perante os homens, eu também o repudiarei “perante os
anjos de Deus.” (S. Lucas, 12:8 e 9.)
“Pois, se alguém
se envergonhar de mim e das minhas “palavras, desse também se envergonhará
o Filho do homem, “quando estiver na sua glória e na de seu Pai e dos
santos “anjos.” (S. Lucas, 9:26.)
Nestas duas
últimas passagens parece mesmo que Jesus coloca acima de si os santos
anjos componentes do tribunal celeste, perante o qual seria ele o defensor
dos bons e o acusador dos maus.
“Mas, pelo que
respeita a vos sentardes à minha direita “ou à minha esquerda. Não me
compete a mim vo-lo conceder; isso será para aqueles a quem meu Pai o
tenha preparado.” (S. Mateus, 20:23.)
“Ora, estando
reunidos os fariseus, Jesus lhes fez esta “pergunta: Que vos parece do
Cristo? De quem é ele filho? “Eles responderam: De David. — Como é então,
retrucou “ele, que David lhe chama em espírito seu senhor, nestes “termos:
O Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha “direita, até que eu reduza
teus inimigos a te servirem de “escabelo para os pés? — Ora, se David lhe
chama seu “senhor, como é ele seu filho? (5. Mateus, 22:41 a 45.)
“Mas, ensinando
no templo, Jesus lhes disse: Como é que os escribas dizem que o Cristo é
filho de David, uma “vez que o próprio David diz a seu Senhor: Senta-te à
minha direita, até que eu haja reduzido teus inimigos a te “servirem de
escabelo para os pés? — Pois, se o próprio “David lhe chama seu Senhor,
como é ele seu filho?” (São Marcos, 12:35 a 37; 5. Lucas, 20:41 a 44.)
Por essas palavras, Jesus
consagra o princípio da diferença hierárquica que existe entre o Pai e o
Filho. Ele podia ser filho de David por filiação corporal, como
descendente de sua raça e foi por isso que teve o cuidado de acrescentar:
Como lhe chama ele em espírito seu Senhor? Se há uma diferença hierárquica
entre o pai e o filho, Jesus, como filho de Deus, não pode ser igual a
Deus.
Ele confirma esta
interpretação e reconhece a sua inferioridade com relação a Deus, em
termos que não deixam lugar a dúvidas.
“Ouvistes o que
foi dito: “Eu me vou e volto a vós. “Se me amásseis, rejubilaríeis, pois
que vou para meu Pai, “porque meu Pai É MAIOR DO QUE EU.” (S. João,
14:28.)
“Aproxima-se
então um mancebo e lhe diz: Bom Mestre, “que bem devo fazer para alcançar
a vida eterna?” Jesus “lhe respondeu: “Por que me chamas bom? Não há senão
“somente Deus que é bom. Se queres entrar na vida, guarda os
mandamentos.” (S. Mateus, 19:16 e 17; S. Marcos, 10:17 e 18; S. Lucas,
18:18 e 19.)
Não só Jesus não
se deu, em nenhuma circunstância, por igual a Deus, como, neste passo,
afirma positivamente o contrário: considera-se inferior a Deus em bondade.
Ora, declarar que Deus lhe está acima, pelo poder e pelas qualidades
morais, é dizer que ele não é Deus. As passagens que seguem apóiam as que
citamos e também são bastante explícitas.
“Não tenho
falado por mim mesmo; meu Pai, que me “enviou, foi quem me prescreveu, por
mandamento seu, o que “devo dizer e como devo falar; — e sei que o seu
mandamento é a vida eterna; o que, pois, eu digo é segundo o que “meu Pai
me ordenou que o diga.” (S. João, 12:49 e 50.)
“Jesus lhes
respondeu: Minha doutrina não é minha. “mas daquele que me enviou. —
Aquele que quiser fazer “a vontade de Deus reconhecerá se a minha doutrina
é dele, “ou se falo por mim mesmo. — Aquele que fala por impulso próprio
procura a Sua própria glória. mas o que “procura a glória daquele que o
enviou é veraz, não há nele “injustiça.”S. João, 7:16 a 18.)
“Aquele que não
me ama não guarda a minha palavra, “e a palavra que tendes ouvido não é
minha, mas de meu “Pai que me enviou.” (S. João, 14:24.)
“Não credes que
estou em meu Pai e que meu Pai está “em mim? O que vos digo não o digo de
mim mesmo; meu “Pai que mora em mim, faz ele próprio as obras que eu
“faço.” (S. João, 14:10.)
“O céu e a terra
passarão, mas as minhas palavras “não passarão. — Pelo que respeita ao dia
e à hora, ninguém o sabe, nem os anjos que estão no céu, nem mesmo “o
Filho, mas somente o Pai.” (S. Marcos, 13:32; S. Mateus, 24:35 e 36.)
“Jesus então
lhes disse: Quando houverdes elevado ao “alto o Filho do homem,
conhecereis o que eu sou, porquanto nada faço de mim mesmo; mas, digo o
que meu Pai “me ensinou; e aquele que me enviou está comigo e não “me
deixou só, porque faço sempre o que lhe é agradável.” (S. João, 8:28 e
29.)
“Desci do céu,
não para fazer a minha vontade, mas “para fazer a vontade daquele que me
enviou.” (S. João, 6:38.)
“Nada posso
fazer de mim mesmo. Julgo segundo “ouço e o meu juízo é justo, porque ‘não
procuro satisfazer “à minha vontade, mas à vontade daquele que me enviou.” (S. João,
5:30.)
“Mas, de mim,
tenho um testemunho maior que o de “João, porquanto as obras que meu Pai
me deu o poder de “fazer, as obras, digo, que eu faço dão testemunho de
mim, “que foi meu Pai que me enviou.” (S. João, 5:36.)“Mas, agora
procurais dar-me morte, a mim que vos “tenho dito a verdade que aprendi de
Deus; é o que Abraão “não fez.” (S. João, 8:40j
Desde que ele
nada diz de si mesmo; que a doutrina que prega não é sua, que ela lhe veio
de Deus, que lhe ordenou viesse dá-la a conhecer; que não faz senão o que
Deus lhe deu o poder de fazer; que a verdade que ensina ele a aprendeu de
Deus, a cuja vontade se acha sujeito, é que ele não é Deus, mas, apenas,
seu enviado, seu messias e seu subordinado.
Fora-lhe
impossível recusar, de maneira mais positiva, qualquer assimilação sua a
Deus, nem determinar o seu papel principal em termos mais precisos. Não há
nos trechos acima pensamentos ocultos sob o véu da alegoria, que só à
força de interpretações se possam descobrir. São pensamentos expressos em
seu sentido próprio, sem ambigüidade.
Se objetarem que
Deus, por não ter querido dar-se a conhecer na pessoa de Jesus, provocou
uma ilusão acerca da sua individualidade, poder-se-ia perguntar em que se
funda semelhante opinião, quem tem autoridade para lhe sondar o fundo do
pensamento e para lhe dar às palavras um sentido contrário ao que elas
exprimem. Pois que, em vida de Jesus, ninguém o considerava como sendo
Deus; que todos, ao contrário, o consideravam um messias, se ele não
quisesse que o conhecessem qual era, bastar-lhe-ia nada dizer. Das suas
afirmações espontâneas, deve-se concluir que ele não era Deus, ou que, se
o era, voluntariamente e sem utilidade, fez uma afirmação falsa.
É de notar-se
que S. João, o Evangelista sobre cuja autoridade mais buscaram apoiar-se
os instituidores do dogma da divindade do Cristo, é precisamente o que
oferece os mais numerosos e mais positivos argumentos em contrário. Ë do
que pode convencer-se qualquer pessoa, lendo as passagens seguintes, que
nada acrescentam, é certo, às provas já citadas, mas as corroboram porque
de tais passagens ressalta evidente a dualidade e a desigualdade das duas
entidades:
“Por esse
motivo, os judeus perseguiam a Jesus e queriam matá-lo, isto é, porque
fizera tais coisas em dia de “sábado. — Mas, Jesus lhes disse: “Meu Pai
obra até ao “presente e eu também obro” (João, 5:16 e 17.)
“Porqüanto o Pai
a ninguém julga; mas deu ao Filho “todo o poder de julgar, a fim de que
todos honrem ao Filho, como honram ao Pai. Aquele que não honra ao Filho,
“não honra ao Pai que o enviou.”
“Em verdade, em
verdade, digo-vos que aquele que ouve “a minha palavra e crê naquele que
me enviou tem a vida “eterna e não cai na condenação; antes, já passou da
morte “à vida.”
“Em verdade, em
verdade, digo-vos que a hora vem, e “ela já veio, em que os mortos ouvirão
a voz do Filho de “Deus e os que a escutarem viverão; pois, assim como o
“Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter “a vida em si mesmo —
e lhe deu o poder de julgar, porque “ele é o Filho do homem.” (João, 5:22
a 27.)
“E o Pai que me
enviou há dado, ele próprio, testemunho de mim. Nunca jamais lhe ouvistes
a voz, nem vistes “a face. — E a sua palavra não permanecerá em vós
por-“que não credes no que ele enviou.” (João, 5:37 e 38.)
“Quando eu
julgasse, o meu julgamento seria digno de “fé, porquanto não estou só; meu
Pai que me enviou está “comigo.” (João, 8:16.)
“Havendo Jesus
dito estas coisas, elevou os olhos ao “céu e disse: “Meu Pai, a hora é
vinda; glorifica a teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. — Como
lhe deste “poder sobre todos os homens, a fim de que ele dê a vida “eterna
a todos os que lhe deste. — Ora a vida eterna consiste em te conhecer a
ti que és O ÚNICO DEUS verdadeiro e “a Jesus-Cristo que tu enviaste.
“Eu te tenho
glorificado na. terra; acabei a obra de que “me encarregaste. — E tu, meu
Pai, glorifica-me, pois, agora também em ti mesmo dessa glória que tive
em ti antes “que o mundo fosse.
“Dentro em pouco
já não estarei no mundo; mas, quanto a eles, estão ainda no mundo, e eu
regresso a ti. Pai “santo, conservo em teu nome os que me deste, a fim de
“que eles sejam como nós.”
“Dei-lhes a tua
palavra e o mundo os odiou, porque eles “não são do mundo, como eu próprio
não sou do mundo.”
“Santifica-os na
verdade. A tua palavra é a verdade “mesma. — Assim como me enviaste ao
mundo, também “eu os enviei ao mundo — e me santifico a mim mesmo “por
eles, a fim de que também eles sejam santificados na “verdade.”
“Não peço apenas
por eles, mas também pelos que em “mim hão de crer pela palavra deles; — a
fim de que estejam todos unidos, como tu, meu Pai, estás em mim e “eu em
ti; que eles, do mesmo modo, sejam um em nós, “a fim de que o mundo creia
que tu me enviaste.”
“Meu Pai, desejo
que, lá onde eu estou, os que tu me “deste também estejam comigo, a fim de
que contemplem “a minha glória, glória que me deste, porque me amaste
“antes da criação do mundo.”
“Pai justo, o
mundo não te há conhecido; eu, porém, “te tenho conhecido; e estes
conheceram que tu me enviaste. “— Fiz que eles conhecessem o teu nome, e
ainda farei que “o conheçam, a fim de que o amor com que me tens amado
“esteja neles e eu próprio neles esteja.” (João, 17:1 a 5, 11 a 14, 17 a
26: Prece de Jesus.)
“É por isto que
meu Pai me ama, porque deixo a vida para a retomar. — Ninguém ma arrebata;
sou eu que a “deixo de mim mesmo; tenho o poder de a deixar e tenho “o
poder de a retomar. É o mandamento que recebi do meu “Pai.” (João, 10:17 e
18.)
“Tiraram a pedra
e Jesus, erguendo os olhos para o “céu, disse estas palavras: Meu Pai,
rendo-te graças por me “haveres exalçado do. — Eu, de mim, sabia que tu me
exalçarias sempre; mas, digo isto para esta gente que me cerca, “a fim de
que creia que foste tu que me enviaste.” (São João, 11:41 e 42: Morte de
Lázaro.)
“Não mais vos
falarei, porquanto o príncipe do mundo “vai vir, embora nada haja em mim
que lhe pertença, mas “para que o mundo conheça que amo a meu Pai e que
faço “o que meu Pai me ordena.” (João, 14:30 e 31.)
“Se guardardes
os meus mandamentos, permanecereis no “meu amor, como eu, que tenho
guardado os mandamentos “de meu Pai, permaneço no seu amor.” (João,
15:10.)
“Então, soltando
grande brado, Jesus disse: Meu Pai, às “tuas mãos entrego o meu ser. E,
tendo pronunciado essas “palavras, expirou.” (S. Lucas, 23:46.)
Se Jesus, ao
morrer, entrega sua alma às mãos de Deus, é que ele tinha uma alma
distinta de Deus, sub-missa a Deus. Logo, ele não era Deus.
As palavras que
se seguem indiciam, da parte de Jesus, certa fraqueza humana, certa
apreensão quanto aos sofrimentos e à morte que lhe vão ser infligidos, o
que contrasta com a natureza divina que lhe atribuem. Elas, porém,
demonstram, ao mesmo tempo, uma submissão de inferior para superior.
“Então, chegou
Jesus a um lugar chamado Getsemani “e disse a seus discípulos: “Sentai-vos
aqui, enquanto vou “ali orar.” — E, tendo levado consigo Pedro e os dois
filhos “de Zebedeu, começou a entristecer-se e a estar em grande “aflição.
— Disse-lhes então: Minha alma se acha em mortal tristeza; ficai aqui e
velai comigo. — E, indo para um “pouco mais longe, prosternou-se com o
rosto em terra e “orou dizendo: Meu Pai, se for possível, faze de mim se
“afaste este cálice; entretanto, não seja como eu quero, mas “como tu
queiras. — Veio em seguida ter com os seus discípulos e, achando-os
adormecidos, disse a Pedro: Pois quê! “não pudestes velar uma hora comigo?
— Vigiai e orai, “a fim de não cairdes em tentação. O Espírito é pronto,
“mas a carne é fraca. — Foi-se de novo, para orar segunda vez, dizendo:
Meu Pai, se este cálice não pode passar “sem que eu o beba, faça-se a tua
vontade.” (S. Mateus, 26:36 a 42: Jesus no Jardim das Oliveiras.)
“Então,
disse-lhes: Minha alma está numa tristeza de “morte; ficai aqui e velai. —
E. tendo-se afastado um pouco, prosternou-se em terra, rogando que, se
fosse possível, “aquela hora se afastasse dele. — Dizia: Abba, meu Pai,
“tudo te é possível, transporta para longe de mim. este cálice; mas, que
se faça a tua vontade e não a minha.” (São Marcos, 14:34 a 36.)
“Em chegando
àquele lugar, disse-lhes: Orai, a fim de “não sucumbirdes à tentação. — E,
tendo-se afastado deles “cerca de um arremesso de pedra, ajoelhou-se.
dizendo: Meu “Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; entretanto, não
“se faça a minha vontade, mas a tua. — Então, apareceu-lhe “‘um anjo do
céu a fortalecê-lo. — Havendo entrado em agonia, redobrava suas preces. —
Veio-lhe um suor de gotas “de sangue, que corria até ao chão.” (S. Lucas,
22:40 a 44.)
“Pela hora nona,
soltou Jesus um grande brado, dizendo: “Eli! Eli! Lamma Sabachtani? que
quer dizer: Meu Deus! “Meu Deus! por que me abandonaste ?“ (S. Mateus,
27:46.)
“E, pela hora
nona, lançou Jesus um grande brado, dizendo: Meu Deus, Meu Deus! por que
me abandonaste?” (S. Marcos, 15:34.)
As passagens que
vamos transcrever poderiam deixar alguma dúvida e dar ensejo a crer-se
numa identificação de Deus com a pessoa de Jesus; mas, além de que não
poderiam prevalecer contra os termos precisos das que precedem, trazem
consigo a devida retificação.
“Perguntaram-lhe: Quem és tu então? Jesus lhes respondeu: Sou o princípio
de todas as coisas, eu que vos falo. “— Tenho muitas coisas a dizer-vos;
mas, aquele que me “enviou é verdadeiro e eu não digo senão o que dele
aprendi.” (S. João, 8:25
e 26.)
“O que meu Pai
me deu é maior do que todas as coisas e ninguém o pode arrebatar das mãos
de meu Pa “Meu Pai e eu somos um.” (S. João, 10:29 e 30.)
Quer isto dizer
que seu Pai e ele são um pelo pensamento, pois que ele exprime o
pensamento de Deus, pois que tem a palavra de Deus.
“Então, os
judeus tomaram de pedras para lapidá-lo. “— Jesus lhes disse: Muitas obras
boas tenho feito diante “de vós, pelo poder de meu Pai. Por qual delas
quereis lapidar-me? — Os judeus lhe responderam: Não é por nenhuma boa
obra que te lapidamos; mas, por causa da tua “blasfêmia, porque, sendo
homem, tu te fazes Deus. — Jesus “lhes replicou: Não está escrito na vossa
lei: Tenho dito “que sois Deuses? — Ora, se ela chama deuses àqueles a
“quem a palavra de Deus era dirigida e não podendo a Escritura ser
destruída, como dizeis que blasfemo, eu a quem “meu Pai santificou e
enviou ao mundo, porque disse que “sou filho de Deus? — Se não faço as
obras de meu Pai, não me creiais; se, porém, as faço, quando não queirais
crer em mim, crede nas minhas obras, a fim de saberdes “e crerdes que meu
Pai está em mim e eu nele.” (S. João, 10:31 a 38.)
Noutro capítulo,
dirigindo-se a seus discípulos, diz:
“Nesse dia,
reconhecereis que estou em meu Pai e vós “em mim e eu em vós.” (S. João,
14:20.)
Destas palavras, não há
concluir-se que Deus e Jesus são uma única entidade, pois, de outro modo,
também se teria de concluir, das mesmas palavras, que os apóstolos e Deus
eram um.
4º - Palavras
de Jesus depois de sua morte
“Jesus lhe
respondeu: Não me toques, porquanto ainda “não subi a meu Pai; vai, porém,
ter com meus irmãos e “dize-lhes de minha parte: Subo a meu Pai e vosso
Pai, a “MEU DEUS e vosso Deus.” (São João, 20:17: Aparição a Maria
Madalena.)
“Mas,
aproximando-se, Jesus lhes falou assim: Todo o “poder me foi dado no céu e
na terra .” (S. Mateus, 28:18: Aparição aos Apóstolos.)
“Ora, sois
testemunhas destas coisas. — Vou enviar-vos “o dom de meu Pai, que vos foi
prometido.” (S. Lucas, 24:48 e 49: Aparição aos Apóstolos.)
Tudo, pois, nas
palavras de Jesus, quer as que ele disse em vida, quer as de depois de sua
morte, acusa uma dualidade de entidades perfeitamente distintas, assim
como o profundo sentimento da sua inferioridade e da sua subordinação em
face do Ente supremo. Pela sua insistência em afirmá-lo espontaneamente,
sem a isso ser constrangido ou provocado por quem quer que fosse, parece
ter querido protestar de antemão contra o papel que, segundo a sua
previsão, lhe seria, atribuído. Se houvesse guardado silêncio sobre a sua
personalidade, o campo teria ficado aberto a todas as suposições, como a
todos os sistemas. A precisão, porém, da sua linguagem afasta todas as
incertezas.
Que autoridade
maior se pode pretender, do que a das suas próprias palavras? Quando ele
diz categoricamente: eu sou ou não sou isto ou aquilo, quem ousaria
arrogar-se o direito de desmenti-lo, embora para colocá-lo mais alto do
que ele a si mesmo se coloca? Quem pode racionalmente pretender estar mais
esclarecido do que ele sobre a sua própria natureza? Que interpretações
podem prevalecer contra afirmações tão formais e multiplicadas como
estas:
“Não vim de mim
mesmo, mas aquele que me enviou “é o único Deus verdadeiro. — Foi de sua
parte que vim. “— Digo o que vi junto a meu Pai. — Não me cabe a mim vo-lo
conceder; isso será para aqueles a quem meu “Pai o preparou. — Vou para
meu Pai, porque meu Pai é maior do que eu. —Porque me chamas bom? Bom não
“há senão somente Deus. — Não tenho falado por mim “mesmo; meu Pai, que me
enviou, foi quem me prescreveu, “por mandamento seu, o que devo dizer. — A
doutrina que “prego não é minha, mas daquele que me enviou. — A “palavra
que tendes ouvido não é minha, mas de meu Pai “que me enviou. — Nada faço
de mim mesmo; digo unicamente o que meu Pai me ensinou. — Nada posso
fazer “de mim mesmo. — Não cuido de fazer a minha vontade, “mas a vontade
daquele que me enviou. — Tenho-vos dito “a verdade que aprendi de Deus. —
Meu alimento é fazer “a vontade daquele que me enviou. — Tu que és o Único
“Deus verdadeiro e Jesus-Cristo a quem enviaste. — Meu “Pai, nas tuas mãos
entrego a minha alma. — Meu Pai, “se for possível, faze que de mim se
afaste este cálice. “— Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e
vosso “Deus.”
Quando
se lêem tais palavras, tica-se a perguntar como há podido vir, sequer, à
mente de alguém a idéia de atribuir-lhes sentido diametralmente oposto ao
que elas exprimem tão claramente, de conceber uma identificação completa,
de natureza e de poder, entre o Senhor e aquele que se declara seu
servidor. Neste grande processo, que dura há quase quinze séculos, quais
as peças de convicção? Os Evangelhos — não há outras —, os quais, no ponto
em litígio, não dão lugar a qualquer equívoco. A documentos autênticos,
que não se podem contestar, sem argüir de falsa a veracidade dos
evangelistas e do próprio Jesus, documentos que se apóiam em testemunhos
oculares, que é que contrapõem? Uma doutrina teórica puramente
especulativa, nascida, três séculos mais tarde, de uma polêmica travada
sobre a natureza abstrata do Verbo, doutrina essa rigorosamente combatida
durante muitos séculos e que só prevaleceu pela pressão de um poder civil
absoluto.
5º — Dupla natureza de Jesus
Poder-se-ia
objetar que, em virtude da dupla natureza de Jesus, suas palavras
exprimiam seu sentir como homem e não como Deus. Sem, neste momento,
examinarmos por que encadeamento de circunstâncias chegaram, muito mais
tarde, à hipótese dessa dupla natureza, admitamo-la, por um instante, e
vejamos se, em vez de elucidar a questão, ela não a complica ainda mais,
ao ponto de torná-la insolúvel.
O que, em
Jesus, haveria de humano era o corpo, a parte material. Deste ponto de
vista, compreende-se que ele haja podido sofrer e tenha mesmo sofrido como
homem. A alma, o Espírito, a mente, numa palavra, a parte espiritual do
Ser é o que haveria nele de divino. Se ele sentia e sofria como homem,
como Deus é que pensaria e falaria. Falava como homem ou como Deus? Eis
uma questão importante, pela autoridade excepcional dos seus ensinamentos.
Se falava como homem, suas palavras são passíveis de controvérsia; se
falava como Deus, são indiscutíveis e temos de aceitá-las e de com elas
conformar-nos, sob pena de deserção e de heresia. O mais ortodoxo será
aquele que mais se aproximar delas.
Dir-se-á que,
sob o seu envoltório corporal, Jesus não tinha consciência da sua natureza
divina? Mas, se fosse assim, ele não teria, sequer, pensado como Deus, sua
natureza divina houvera permanecido em estado latente; só a natureza
humana teria presidido à sua missão, aos seus atos morais, como aos seus
atos materiais. É, pois, impossível abstrair-se da sua natureza divina
durante a sua vida, sem se lhe enfraquecer a autoridade.
Mas, se ele
falou como Deus, por que esse incessante protesto contra a sua natureza
divina que, em tal caso, ele não podia ignorar? Ter-se-ia então enganado,
o que seria pouco divino, ou teria cientemente enganado o mundo, o que
ainda o seria menos. Parece-nos difícil sair desse dilema.
Se se admitir
que falou ora como homem, ora como Deus, a questão se complica, pela
impossibilidade de distinguir-se o que vinha do homem e o que procedia de
Deus.
Dado que ele
tivesse motivos para dissimular sua verdadeira natureza durante a missão
que desempenhava, o meio mais simples teria sido não falar dela, ou
exprimir-se, como o fez noutras circunstâncias, de modo vago e parabólico,
sobre os pontos cujo conhecimento estava reservado ao futuro. Ora, este
não é aqui o caso, pois que as palavras acima nenhuma ambigüidade
apresentam.
Enfim, se,
apesar de todas estas considerações, ainda se pudesse supor que, quando
vivo, ele ignorava a sua verdadeira natureza, outro tanto já não se pode
admitir se desse, depois da sua ressurreição, visto que, quando aparece a
seus discípulos, já não é o homem quem fala, é o Espírito desprendido da
matéria, que já havia de ter recobrado a plenitude de suas faculdades
espirituais e a consciência do seu estado normal, da sua identificação
com a divindade. Entretanto, foi então que disse:
"Subo para meu
Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus!"
A subordinação
de Jesus é ainda indicada pela sua qualidade mesma de mediador, que
implica a existência de uma pessoa distinta. Ë ele quem intercede junto a
seu Pai; quem se oferece em sacrifício para remissão dos pecadores. Ora,
se ele é o próprio Deus, ou se fosse em tudo igual a este, não precisaria
interceder, porquanto ninguém intercede junto a si mesmo.
6º — Opinião dos Apóstolos
Até aqui,
apoiamo-nos exclusivamente nas palavras do Cristo, como único elemento
peremptório de convicção, porque, fora daí, somente há opiniões pessoais.
De todas essas
opiniões, as de maior valor são, incontestavelmente, as dos apóstolos, uma
vez que estes o assistiram em sua missão e uma vez também que, se ele lhes
houvesse dado instruções secretas, respeito à sua natureza, alguns traços
dessas instruções se descobririam nos escritos deles. Tendo vivido na sua
intimidade, melhor do que ninguém haviam eles de conhecê-lo. Vejamos,
pois, de que maneira o consideraram.
“Oh! israelitas,
escutai as palavras que vos vou dizer: “Sabeis que Jesus de Nazaré foi um
homem que Deus tornou célebre entre vós, pelas maravilhas, prodígios e
milagres que o mesmo Deus fez por seu intermédio no meio “de vós. —
Entretanto, vós o crucificastes e lhe destes morte pelas mãos dos maus,
tendo-vos ele sido entregue por “ordem. expressa da vontade de Deus e por
decreto da sua “presciência.— Mas, Deus o ressuscitou, detendo as dores
“do inferno, por impossível que ele aí permanecesse. — Porque David disse
em seu nome: Eu tinha o Senhor presente sempre diante de mim, a fim de
que eu não fosse “abalado. — É por isso que o meu coração se rejubilou,
“que a minha língua cantou cânticos de alegria e que a “minha carne mesma
repousará em esperança; — porque não “deixareis minha alma no inferno e
não permitireis que o “vosso Santo experimente a corrupção. — Vós me
fizestes “conhecer o caminho da vida e me enchereis da alegria que “dá a
vista do vosso semblante.” (Atos dos Apóstolos, 2:22 a 28. Prédica de S.
Pedro.)
“Depois então
que foi elevado pelo poder de Deus e que “recebeu o cumprimento da
promessa que o Pai lhe fizera “de enviar o Santo Espírito, ele espalhou
esse Espírito Santo que agora vedes e ouvis; — porquanto David não subiu
“ao céu. — Ora, ele próprio disse: O Senhor disse a meu “Senhor: senta-te
à minha direita — até que eu haja reduzido teus inimigos a te servirem de
escabelo. — Que, pois, “toda a Casa de Israel saiba, com absoluta certeza,
que Deus “fez Senhor e Cristo a esse Jesus que vós crucificastes.” (Atos
dos Apóstolos, 2:33 a 36. Prédica de S. Pedro.)
“Moisés disse a
nossos pais: o Senhor vosso Deus vos “suscitard dentre os vossos irmãos um
profeta como eu. “Escutai-o em tudo o que ele disser. — Quem não escutar
“esse profeta será exterminado do meio do povo.“Foi por vós
primeiramente que Deus suscitou seu Filho “e vo-lo enviou para vos
abençoar, a fim de que cada um “se convertesse da sua má vida.” (Atos dos
Apóstolos, 3:22, 23 e 26. Prédica de S. Pedro.)
“Declaramos a
todos vós e a todo o povo de Israel que “é pelo nome de Nosso Senhor
Jesus-Cristo de Nazaré, a “quem crucificastes e que Deus ressuscitou
dentre os mortos; é por ele que este homem está agora curado, como o
“vedes, diante de vós.” (Atos dos Apóstolos, 4:10. Prédica de S. Pedro.)
“Os reis da
terra se levantaram e os príncipes se uniram contra o Senhor e contra o
seu Cristo. — Herodes e “Pôncio Pilatos com os Gentios e o povo de Israel
verdadeiramente se conluiaram contra o vosso santo Filho Jesus, “a quem
consagrastes por vossa unção, para fazer tudo o “que o vosso poder e o
vosso conselho haviam ordenado “que fosse feito.” (Atos dos Apóstolos,
4:26 a 28. Prece dos Apóstolos.)
“Pedro e os
outros apóstolos responderam: Cumpre obedecer antes a Deus do que aos
homens. — O Deus de “nossos pais ressuscitou a Jesus que vós fizestes
morrer pendurando-o no madeiro. — Foi a ele que Deus elevou pela “sua
destra, como sendo o príncipe e o salvador, para dar “a Israel a graça da
penitência e a remissão dos pecados.” (Atos dos Apóstolos, 5:29 a 31.
Resposta dos Apóstolos ao sumo-sacerdote.)
“Foi esse Moisés
que disse aos filhos de Israel: Deus “vos suscitará dentre ou vossos
irmãos um profeta como eu, “escutai-o.
“Mas, o
Altíssimo não habita em templos feitos pelas “mãos dos homens, segundo
esta palavra do profeta: — O “céu é meu trono e a terra meu escabelo. Que
casa me “edificareis, diz o Senhor? e qual poderia ser o lugar de “meu
repouso?” (Atos dos Apóstolos, 7:37, 48 e 49. Discurso de Estevão.)
“Mas, estando
Estevão cheio do Espírito Santo e elevando os olhos ao céu, viu a glória
de Deus e a Jesus que “estava de pé à direita de Deus, e disse: Vejo
abertos os “céus e o Filho do homem que está de pé à direita de Deus.
“Então, lançando
grandes brados e tapando os ouvidos, “todos juntos se lançaram sobre ele;
e, tendo-o arrastado “para fora dos muros da cidade, o lapidaram; e as
testemunhas, tomando-lhe as vestes, as puseram aos pés de um “mancebo
chamado Saulo (mais tarde Paulo). — Enquanto “o lapidavam, Estevão
invocava a Jesus, dizendo: Senhor “Jesus, recebe meu Espírito.” (Atos dos
Apóstolos, 7:55 a 58. Martírio de Estevão.)
Estas citações
comprovam claramente o caráter que os apóstolos atribuíam a Jesus. A idéia
exclusiva que ressalta desses textos é a da sua subordinação a Deus, da
constante supremacia de Deus, sem que coisa alguma aí revele um pensamento
do assimilação qualquer, de natureza e de poder. Para eles, Jesus era um
homem profeta, escolhido e abençoado por Deus. Não foi, pois, entre os
apóstolos que teve origem a crença na divindade de Jesus. S. Paulo, que
não conheceu a Jesus, mas que, de ardoroso perseguidor, se tornou o mais
zeloso e o mais eloqüente discípulo da nova fé e cujos escritos prepararam
os primeiros formulários da religião cristã, não é menos
explícito a respeito. Há nele o mesmo sentimento de dois seres distintos
e da supremacia do Pai sobre o Filho.
“Paulo, servidor
de Jesus-Cristo, apóstolo da vocação divina, escolhido e destinado a
anunciar o evangelho de Deus que ele antes prometera por seus profetas nas
escrituras “santas — no tocante a seu filho, que lhe nasceu, segundo “a
carne, do sangue e da raça de David; — que foi predestinado a ser filho
de Deus, num soberano poder, segundo “o Espírito de santidade, pela
ressurreição dentre os mortos; no tocante, digo, a Jesus-Cristo, nosso
Senhor; — por “quem recebemos a graça do apostolado, para fazer que
“obedeçam à fé todas as nações pela virtude do seu nome; “— no rol das
quais também estais vós, como tendo sido chamados por Jesus-Cristo; — a
vós que estais em Roma, “que sois queridos de Deus e chamados a ser
santos; que “Deus, nosso Pai, e Jesus-Cristo, nosso Senhor, vos doem a
“graça e a paz.” (Aos Romanos, 1:1 a 7.)
“Estando assim
justificados pela fé, tenhamos a paz com “Deus por Jesus-Cristo, nosso
Senhor.
“Porque, quando
ainda estávamos nos langores do pecado, Jesus-Cristo morreu pôr ímpios
como nós, no tempo “destinado por Deus.
“Jesus-Cristo
não deixou de morrer por nós no tempo “destinado por Deus. Assim, estando
agora justificados pelo “seu sangue, seremos, com mais forte razão,
isentados por “ele da cólera de Deus.
“E não somente
fomos reconciliados, como até nos glorificamos em Deus por Jesus-Cristo,
nosso Senhor, por quem “obtivemos essa reconciliação.
“Se muitos
morreram pelo pecado de um só, a misericórdia e o dom de Deus se
derramaram, com mais forte “razão, mais abundantemente sobre muitos pela
graça de “um só homem, que é Jesus-Cristo.” (Aos Romanos, 5:1, 6, 9, 11,
15, 17.)
“Se somos
filhos, somos também herdeiros, HERDEIROS de “Deus e CO-HERDEIROS de
Jesus-Cristo, contanto, porém, que “soframos com ele.” (Aos Romanos,
8:17.)
“Se confessais
de boca que Jesus-Cristo é o Senhor e “se credes de coração que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, sereis salvos.” (Aos Romanos, 10:9.)
“Em
seguida virá a consumação de todas as coisas, “quando ele houver entregue
o seu reino a Deus e Pai e houver destruído todo império, toda dominação,
todo poder —“porqüanto Jesus-Cristo tem de reinar, até que seu Pai haja
“posto sob seus pés todos os seus inimigos. — Ora, a morte “será o último
inimigo a ser destruído, pois a Escritura diz “que Deus tudo lhe pós
debaixo dos pés e tudo lhe sujeitou, “sendo indubitável que daí se deve
excetuar aquele que submeteu todas as coisas. — Quando, pois, todas as
coisas “estiverem submetidas ao Filho, então o Filho estará, ele “mesmo,
submetido àquele que lhe terá submetido todas as “coisas, a fim de que
Deus seja tudo em todos.” (I aos Coríntios, 15:24 a 28.)
“Mas, vemos que
Jesus, que fora tornado, por um pouco “de tempo, inferior aos anjos, foi
coroado de glória e de “honras, devido à morte que ele sofreu; Deus em sua
bondade, tendo querido que ele morresse por todos — por ser “ele bem
digno de Deus, para quem e por quem são todas “as coisas, quis que, por
querer conduzir à glória muitos “filhos, ele consumasse e aperfeiçoasse
pelo sofrimento aquele que havia de ser o chefe e o autor da salvação
deles.
“Assim, o que
santifica e os que são santificados vêm “todos de um mesmo princípio; por
isso é que ele não se “vexa de lhes chamar irmãos — dizendo: Anunciarei o
teu nome aos meus Irmãos; entoar-te-ei louvores no meio da “assembléia do
teu povo. — E, algures: porei nele a minha “confiança. E, noutro lugar:
eis-me aqui com os filhos que “Deus me deu.
“Eis por que
necessário se tornou que ele fosse em tudo “semelhante a seus irmãos, para
ser, diante de Deus, um “pontífice compassivo e fiel em seu ministério, a
fim de expiar os pecados do povo. — Pois, é das penas e dos sofrimentos
mesmos, pelos quais foi tentado e experimentado, “que ele tira a virtude e
a força de socorrer os que também “são tentados.” (Aos Hebreus, 2:9 a 13,
17, 18.)
“Portanto, meus
santos irmãos, vós que tendes parte na “vocação celeste, considerai a
Jesus, que é o apóstolo e o “pontífice da religião que professamos; — que
é fiel àquele “que o estabeleceu nesse cargo, como Moisés lhe foi fiel em
“toda a sua casa; — porquanto ele foi julgado digno de uma “glória tanto
maior do que a de Moisés, quanto aquele que “edificou a casa é mais
estimável do que a própria casa; “visto não haver casa que não tenha sido
construída por “alguém. Ora, aquele que é o arquiteto e o criador de todas
“as coisas é Deus.” (Aos Hebreus, 3:1 a 4.)
7º — Predição dos
profetas, com relação a Jesus
Além das
afirmações de Jesus e da opinião dos apóstolos, há um testemunho cujo
valor os crentes mais ortodoxos não poderiam contestar, pois que o apontam
constantemente como artigo de fé: é o do próprio Deus, isto é, o dos
profetas falando por inspiração e anunciando a vinda do Messias. Ora,
aqui vão as passagens da Bíblia consideradas como predição desse grande
acontecimento.
“Eu o vejo,
porém não agora; olho-o, porém não de “perto; uma estrela proveio de Jacob
e um cetro se elevou “de Israel e traspassará os chefes de Moab e
destruirá todos “os filhos de Seth.” (Números, 24:17.)
“Eu lhes
suscitarei um profeta, como tu, dentre seus “irmãos e porei na sua boca as
minhas palavras e ele dirá “o que eu lhe houver ordenado. E dar-se-á que
àquele que “não escutar as palavras que ele houver dito em meu nome, “a
esse pedirei contas.” (Deuteronômio, 18:18 e 19.)
“Acontecerá,
pois, quando chegarem os dias de te ires “com teus pais, que farei
levantar-se a tua posteridade de-“pois de ti, um de teus filhos, e
estabelecerei o seu reino. “Ele me construirá uma casa e eu firmarei o seu
trono para “sempre. Ser-lhe-ei pai e ele me será filho e dele não
retirarei a minha misericórdia, como a retirei daquele que “foi antes de
ti, e o estabelecerei na minha casa e no meu “reino para sempre e seu
trono se afirmará para sempre.” (Paralipomenos, 17:11 a 14.)
“Eis por que o
Senhor mesmo vos dará um sinal: uma “virgem ficará grávida e parirá um
filho e ele se chamará “Emmanuel.” (Isaías, 7:14.)
“Pois o menino
nos nasceu, o Filho nos foi dado e o “império foi posto sobre seus ombros
e chamar-se-lhe-á, seu “nome, o Admirável, o Conselheiro, o Deus forte, o
Poderoso, “o Pai da Eternidade, o Príncipe da paz.” (Isaías, 9:5.)
“Aqui está meu
servidor, eu o sustentarei; é meu eleito, “minha alma pôs nele sua
afeição; nele pus o meu Espírito; “ele exercerá a justiça entre as nações.
“Ele
absolutamente não se retirará, nem se precipitará, “até que eu haja
estabelecido a justiça na terra e os seres “se submeterão à sua lei.”
(Isaías, 42:1 a 4.)
“Ele gozará do
trabalho de sua alma e dele se fartará; “e meu servo justo a muitos
justificará, pelo conhecimento “que terão dele e ele próprio lhes
arrebatará as iniqüidades.” (Isaías, 53:11.)
“Rejubila-te ao
extremo, filha de Sião; solta gritos de “júbilo, filha de Jerusalém! Eis
que o teu rei a ti virá, justo “e salvador humilde e montado num jumento,
sobre o potro “de uma jumenta. E eu farei desaparecer os carros de guerra
de Efraim e os cavalos de Jerusalém e o arco do combate também
desaparecerá e o rei falará de paz às nações. “E sua dominação se
estenderá de um mar a outro mar e “do rio aos extremos da terra.”
(Zacarias, 9:9 e 10.)
“E ele (o
Cristo) se manterá e governará pela força “do Eterno e com a magnificência
do nome do Eterno seu “Deus. E eles voltarão e agora ele será glorificado
até às “extremidades da terra e será ele quem fará a paz.” (Miquéias,
5:4.)
A distinção
entre Deus e seu futuro enviado se acha aí caracterizada do modo mais
formal. Deus o designa por seu servidor, conseguintemente por seu
subordinado. Nada há, em suas palavras, que implique a idéia de igualdade
de poder, nem de consubstancialidade entre os dois seres. Ter-se-ia Deus
enganado e teriam visto com mais exatidão do que ele os homens que vieram
três séculos depois de Jesus-Cristo? Tal parece ser a pretensão deles.
8º — O Verbo se fez carne
“No princípio
era o Verbo e o Verbo estava com Deus “e o Verbo era Deus. — Ele estava no
princípio com Deus. “— Todas as coisas foram feitas por ele e nada do que
foi “feito o foi sem ele. — Nele estava a vida e a vida era a “luz dos
homens. — E a luz brilhou nas trevas e as trevas “não a compreenderam.
“Houve um homem
enviado de Deus, que se chamava “João. — Ele veio para servir de
testemunha, para dar “testemunho da luz, a fim de que todos cressem por
ele
Ele não era a
luz, mas veio para dar testemunho dAquele que era a luz.
“Aquele era a
verdadeira luz que ilumina todo homem “que vem a este mundo, e o mundo foi
feito por ele, e o “mundo não o conheceu. — Ele veio à sua casa e os seus
“não o receberam. — Mas, ele deu a todos que o receberam “o poder de se
tornarem filhos de Deus, àqueles que crêem “no seu nome, os quais não
nasceram do sangue, nem da “vontade da carne, nem da vontade do homem, mas
de Deus “mesmo.
“E o Verbo foi
feito carne e habitou entre nós e vimos a sua glória, qual a que o Filho
único havia de receber “do Pai; e ele, digo, habitou entre nós, cheio de
graça e de “verdade.” (João. 1:1 a 14.)
Esta passagem
dos Evangelhos é a única que, à primeira vista, parece encerrar
implicitamente uma idéia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus;
é também a que serviu de base, mais tarde, à controvérsia a tal respeito.
A questão da divindade de Jesus surgiu gradativamente; nasceu das
discussões levantadas a propósito das interpretações que alguns deram às
palavras Verbo e Filho. Só no quarto século uma parte da Igreja a adotou,
em principio. Semelhante dogma resultou, pois, de decisão dos homens e não
de uma revelação divina.
É de notar-se,
antes de tudo, que as palavras acima citadas são de João e não de Jesus e
que, ainda quando se admita que não tenham sido alteradas, elas não
exprimem, na realidade, mais que uma opinião pessoal, uma indução, em que
se depara com o misticismo habitual da sua linguagem; não poderiam, pois,
prevalecer contra as reiteradas afirmações do próprio Jesus.
Mesmo, porém,
aceitando-as tais quais são, elas não resolvem de modo algum a questão no
sentido da divindade, porquanto se aplicariam igualmente a Jesus,
criatura de Deus.
Com efeito, o
Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Tendo recebido diretamente de
Deus a palavra, com a missão de a revelar aos homens, ele a assimilou. A
palavra divina, de que se penetrara, encarnou nele; ele a trouxe consigo
ao nascer e assim é que João pode com razão dizer: O Verbo foi feito carne
e habitou entre nós. Jesus podia, pois, ter sido encarregado de transmitir
a palavra de Deus, sem ser o próprio Deus, como um embaixador transmite as
palavras do seu soberano, sem ser o soberano. Segundo o dogma da
divindade, é Deus quem fala; na outra hipótese, ele fala pela boca do seu
enviado, o que nada tira à autoridade das suas palavras.
Mas, quem
autoriza esta suposição, de preferência a outra? A única autoridade
competente para decidir a questão é a das próprias palavras de Jesus,
quando diz:
«Não tenho
falado por mim mesmo; aquele que me enviou foi quem me prescreveu, por
seu mandamento, o que tenho de dizer. — A doutrina que prego não é minha,
mas daquele que me enviou; a palavra que tendes ouvido não é palavra
minha, mas de meu Pai que me enviou.»
A ninguém fora possível
exprimir-se com mais clareza e precisão.
A qualidade de
Messias ou enviado, que lhe é atribuída em todo o curso dos Evangelhos,
implica uma posição subordinada com relação àquele que ordena; o que
obedece não pode ser igual ao que manda. João caracteriza esta posição
secundária e, por conseguinte, estabelece a dualidade de entidades, quando
diz: E vimos a sua glória, tal como o Filho único devia recebê-la do Pai,
visto que aquele que recebe não pode ser o que dá e aquele que dá a glória
não pode ser o igual daquele que a recebe. Se Jesus é Deus, possui a
glória por ai mesmo e não a espera de ninguém; se Deus e Jesus são um
único ser sob dois nomes diferentes, entre eles não poderia existir
supremacia, nem subordinação. Ora, não havendo paridade absoluta de
posições, segue-se que são dois seres distintos.
A qualificação
de Messias divino não exprime que haja mais igualdade entre o mandatário e
o mandante, do que a de enviado real entre um rei e seu representante.
Jesus era um
messias divino pelo duplo motivo de que de Deus é que tinha a sua missão e
de que suas perfeições o punham em relação direta com Deus.
9º — O Filho de Deus e o Filho do homem
O titulo de
Filho de Deus, longe de implicar igualdade, é, muito ao contrário,
indício de uma submissão. Ora, ninguém é submetido a si mesmo, mas a
alguém.
Para que Jesus
fosse, em absoluto, igual a Deus, fora preciso que ele existisse, como
Deus, de toda a eternidade, isto é, que fosse incriado. Ora, o dogma diz
que Deus o gerou desde toda a eternidade; mas quem diz gerou diz criou.
Fosse ou não desde toda a eternidade, ele não deixa por isso de ser uma
criatura e de estar, como tal, subordinada ao seu Criador. É a idéia que
implicitamente se contém no termo Filho.
Nasceu Jesus no
tempo? Ou, por outra: houve um tempo, na eternidade passada, em que ele
não existia? ou é ele co-eterno com o Pai? Tais as sutilezas sobre que
disputaram durante séculos. Em que autoridade se apóia a doutrina da
co-eternidade, que passou ao estado de dogma? Na opinião dos homens que a
engendraram. Mas, esses homens em que autoridade fundaram semelhante
opinião? Não foi na de Jesus, pois que este se declara subordinado; não
foi na dos profetas que o anunciam como o enviado e o servo de Deus. Em
que documentos desconhecidos, mais autênticos do que os Evangelhos,
encontraram eles tal doutrina? Parece que só na consciência e na
superioridade de suas próprias luzes.
Deixemos, pois,
essas discussões vãs, que a nada conduzem e cuja própria solução, fosse
esta possível, não tornaria melhores os homens. Digamos que Jesus é Filho
de Deus, como todas as criaturas, que ele chama a Deus Pai, como nós
aprendemos a tratá-lo de nosso Pai. Ë o Filho bem-amado de Deus, porque,
tendo alcançado a perfeição, que aproxima de Deus a criatura, possui toda
a confiança e toda a afeição de Deus. Ele se diz Filho único, não porque
seja o único ser que haja chegado à perfeição, mas porque era o único
predestinado a desempenhar aquela missão na Terra.
Se pode parecer
que a qualificação de Filho de Deus apóia a doutrina da divindade, o mesmo
já não se dá com a de Filho do homem, que também Jesus deu a si mesmo, em
sua missão, e que constituiu objeto de muitos comentários.
Para lhe
compreendermos o verdadeiro sentido, temos que remontar à Bíblia, onde a
encontramos dada pelo próprio Deus ao profeta Ezequiel.
“Tal a imagem do
Senhor, que me foi apresentada. “Ao ver aquelas coisas, caí de rosto em
terra e ouvi uma “voz que me falou assim: Filho do homem, tem-te de pé “e
eu falarei contigo. — E, tendo-me falado dessa maneira, “o Espírito entrou
em mim e me firmou nos pés e ouvi que “me falava, dizendo: Filho do homem,
envio-te aos filhos de “Israel, a um povo apóstata, que se retirou de mim.
Violaram até hoje, eles e seus pais, a aliança que eu com eles “fizera.”
(Ezequiel, 2:1, 2, 3.)
"Filho do homem,
eis que eles te prepararam grilhões; “acorrentar-te-ão e dali não sairás.”
(Idem, 3:25.)
“O Senhor me
dirigiu então a palavra, dizendo: — E “tu, Filho do homem, ouve o que diz
o Senhor Deus à terra “de Israel: o fim vem; vem esse fim nos quatro
cantos da “terra.” (Idem, 7:1 e 2.)
“No décimo dia
do décimo mês do nono ano, o Senhor “me dirigiu a palavra, dizendo: —
Filho do homem, marca “bem este dia em que o rei de Babilônia reuniu suas
tropas “diante de Jerusalém.” (Idem, 24:1 e 2.)
“Disse-me ainda
o Senhor estas palavras: — Filho do “homem, vou ferir-vos com uma chaga é
tirar-vos o que “há de mais agradável aos vossos olhos; mas, não me fareis
“lamentações fúnebres; não chorareis e lágrimas não vos “correrão pelas
faces. — Gemereis em segredo e não vos “enlutareis, como se faz pelos
mortos; a vossa coroa se conservará presa à vossa cabeça e tereis nos
pés as vossas “sandálias; não cobrireis o vosso rosto e não comereis as
“viandas que se dão aos que se acham de luto. — Falei “então pela manhã ao
povo e à tarde minha mulher morreu. No dia seguinte, fiz o que Deus me
ordenara.” (Idem, 24:15 a 18.)
“O Senhor ainda
me falou e disse: — Filho do homem “profetiza com referência aos pastores
de Israel; profetiza “e dize aos pastores: Eis o que diz o Senhor Deus: Ai
dos “pastores de Israel que se apascentam a si mesmos; os pastores não
apascentam seus rebanhos?” (Idem. 34:1 e 2.)
“Então, eu o
ouvi que me falava, dentro da casa; e o “homem que me estava próximo
disse: — Filho do homem, “está aqui o lugar do meu trono, o lugar onde
porei meus “pés e onde ficarei para sempre no meio dos filhos de Israel “e
a casa de Israel não profanará mais o meu santo nome “no futuro, nem eles,
nem seus reis, com as suas idolatrias, “com os sepulcros de seus reis, nem
com as nobres descendências.” (Idem, 43:6 e 7.)
“Porque. Deus
não ameaça como o homem e não entra “em furor como o Filho do homem.”
(Judith, 8:15.)
É evidente que a
qualificação de Filho do homem quer aqui dizer: que nasceu do homem, por
oposição ao que está fora da Humanidade. A última citação, tirada do livro
de Judith, não permite dúvida quanto ao significado da expressão, usada em
sentido muito literal. Deus somente assim designa a Ezequiel, certamente
para lhe lembrar que, mau grado ao dom de profecia que lhe fora concedido,
ele não deixava de pertencer à Humanidade e a fim de que não se
considerasse de natureza excepcional.
Jesus dá a si
mesmo essa qualificação com persistência notável, pois só em
circunstâncias muito raras ele se diz Filho de Deus. Em sua boca, não pode
ter ela outra significação, que não lembrar que também ele pertence à
Humanidade, identificando-se desse modo aos profetas que o precederam e
aos quais se comparou, aludindo à sua morte, quando disse: Jerusalém, que
matas os profetas! A insistência com que ele se designa por filho do homem
parece um protesto antecipado contra a qualidade que, segundo previa,
lhe seria dada mais tarde, a fim de ficar bem determinado que essa
qualidade não safra de seus lábios.
É de notar-se
que, durante essa interminável polêmica que apaixonou os homens por longa
série de séculos e que ainda continua, que acendeu fogueiras e fez correr
rios de sangue, o que se discutia era uma abstração, a natureza de Jesus,
da qual se fizera a pedra angular do edifício, embora deste não falassem e
hajam olvidado uma coisa, a que o Cristo disse ser toda a lei e os
profetas: o amor de Deus e do próximo e a caridade, que ele estabeleceu
como condição expressa da salvação. Aferraram-se a questão da afinidade de
Jesus com Deus e emudeceram com relação às virtudes que ele recomendou e
exemplificou.
O próprio Deus
ficou apagado, ante a exaltação da personalidade do Cristo. No símbolo de
Nicéia, diz-se apenas: Cremos num só Deus, etc. Mas, como é esse Deus?
Nenhuma menção ali há dos seus atributos essenciais: a soberana bondade e
a soberana justiça. É que estas palavras teriam sido a condenação dos
dogmas que consagram a sua parcialidade para com certas criaturas, a sua
inexorabilidade, o seu ciúme, a sua cólera, o seu espírito de vindita, e
com que justificaram as crueldades cometidas em seu nome.
Se o símbolo de
Nicéia, que se tornou o fundamento da fé católica, estava conforme ao
espírito do Cristo, por que o anátema com que ele termina? Não está aí uma
prova de que ele é obra da paixão dos homens? A que se deve, aliás, a sua
adoção? À pressão do imperador Constantino, que dele fez uma questão mais
política, do que religiosa. Sem sua ordem, o concílio de Nicéia não se
houvera realizado; sem a intimidação que ele exerceu, é mais que provável
que o arianismo levasse a melhor. Tudo, pois, dependeu da autoridade
soberana de um homem, que não pertence à Igreja, que reconheceu, mais
tarde, o erro político que cometera e que inutilmente procurou voltar
atrás, conciliando os partidos. Unicamente daquela autoridade dependeu não
haver arianos em vez de católicos e de não ser hoje o arianismo a
ortodoxia e o catolicismo a heresia.
Após dezoito
séculos de lutas e disputas vãs, no curso das quais foi posta inteiramente
de lado a parte mais essencial do ensino do Cristo, a única que podia
garantir a paz para a Humanidade, toda gente se acha cansada dessas
discussões estéreis, que só a perturbações conduziram, gerando a
incredulidade, e cujo objeto já não satisfaz à razão.
A opinião geral
manifesta hoje uma tendência acentuada a voltar às idéias fundamentais da
Igreja primitiva e à parte moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a
única que pode tornar melhores os homens. Essa é clara, positiva e não
pode abrir ensejo a nenhuma controvérsia. Se, desde o princípio, a Igreja
houvesse tomado esse caminho, seria agora onipotente em vez de estar em
declínio. Houvera congregado a imensa maioria dos homens, em lugar de ter
sido esfacelada pelas facções.
Quando marcharem
sob essa bandeira, os homens se darão as mãos fraternalmente, em vez de se
anatematizarem e amaldiçoarem, por questões que quase nunca compreendem.
Aquela
tendência da opinião é sinal de que chegou o momento de ser levada a
questão para o verdadeiro terreno.
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