As religiões de um modo geral pregam que seremos punidos pelo mal que fazemos. O espiritismo acrescenta que seremos cobrados não só pelo mal que fazemos, mas pelo bem que deixamos de fazer.
Esse
ensinamento é embasado na história de Lázaro, que Jesus nos conta no
Evangelho. Lázaro era um mendigo, cheio de feridas e esfomeado, que
vivia à porta de um homem muito rico. Depois que os dois morreram,
Lázaro foi para o céu e o rico para o inferno. Lá do inferno, o rico
morria de sede e implorava para que deixassem Lázaro levar água para
ele, nem que Lázaro só molhasse a ponta do dedo para refrescar a sua
língua. E foi informado de que isso não seria possível. Ele, o rico,
havia recebido muitos bens na vida; e Lázaro somente males. Além disso,
havia agora um abismo intransponível entre eles.
O rico não
foi punido por fazer o mal. Ele não fez o mal. Mas deixou de fazer o
bem, deixou de socorrer Lázaro, que vivia à sua porta, esfomeado e
ferido.
Você já
sabia disso, não sabia? Não é novidade pra você que devemos fazer todo o
bem ao nosso alcance. Eu não escreveria sobre isso, pois você sabe
muito bem disso.
Acontece
que estamos engatinhando nas virtudes. Somos aprendizes repetentes. Há
quanto tempo você acha que nós estamos aprendendo as mesmas coisas? Em
quantas reencarnações você já deve ter lido as parábolas de Jesus no
Evangelho? Cometemos erros sem calcular suas consequências; cometemos
erros grandes pensando que são erros pequenos; cometemos erros sem saber
que são erros. Estamos melhorando, mas nosso passo é lento. E enquanto
não internalizamos o fazer o bem, enquanto não nos tornamos naturalmente caridosos, estamos sujeitos à culpa.
Quando eu
tinha onze anos minha mãe ficou grávida. Vivíamos tempos difíceis. A
expectativa, no entanto, era enorme. Minha mãe, meus irmãos e eu
escolhíamos nomes, fazíamos planos, imaginávamos situações. Torcíamos
pra que viesse uma menina, já que éramos três irmãos homens. Veio uma
menina! Nasceu uma menina, mas não veio à nossa casa, ficou
hospitalizada com problemas de saúde. Não me diziam o que era. Na época
eu era adepto da Seicho-no-ie. E me disseram pra fazer o Shinsokan e ler
a Sutra Sagrada todos os dias, pra minha irmã ficar boa.
A mãe
passava os dias no hospital. E eu, pela primeira vez na vida, tinha
tanta liberdade. Aproveitava os dias pra ir ao rio, coisa que queria
fazer há muito tempo e não podia. Tentei ler a Sutra algumas vezes, mas
não conseguia me concentrar pensando no rio que estava me esperando.
Aos vinte e
um dias de vida, minha irmã desencarnou. Não cheguei a vê-la com vida.
No velório, olhando aquele corpinho duro dentro do caixãozinho branco,
pensava nas esperanças desfeitas e na Sutra que não li como devia.
Me senti
culpado por não ter feito o Shinsokan e lido a Sutra Sagrada. Quem sabe
se eu tivesse feito tudo direitinho, algum milagre não teria acontecido?
Pensei assim por um bom tempo.
Minha
intenção não é contar uma história comovente. Recebo relatos semelhantes
quase todos os dias. Muitas e muitas pessoas se culpam pelo que não
fizeram, pelo que poderiam ter feito, pelo que – agora elas sabem – deveria ter sido feito.
Li relatos
de que alguns pais e mães de vítimas da tragédia de Santa Maria se
questionam, se cobram, se perguntam se não poderiam ter evitado o que
aconteceu. O que poderiam ter feito? Impedido seus filhos de saírem de
casa? Acompanhado seus filhos à festa? Acompanhado os preparativos para a
festa e conferido normas de segurança? Claro que não. Os filhos eram
estudantes responsáveis, e só se fala em normas de segurança agora,
ninguém costuma se preocupar com isso.
Imagino
também o sentimento de culpa dos donos da boate, o desespero por não
poder voltar atrás e tomar cuidados que geralmente não são valorizados.
Como a sensação de culpa deve estar rondando suas famílias, esposas,
filhos.
Os
funcionários, os músicos, tantos parentes e amigos dos que partiram,
tanta gente gostaria de poder voltar no tempo e alterar o curso dos
acontecimentos.
Mas a
culpa, por si só, não leva a lugar algum. Sendo a culpa legítima ou não,
que ela se transforme em vontade de fazer o certo. Que a energia
negativa da culpa seja transformada em energia positiva , criadora,
útil, construtiva, que possa beneficiar alguém. E que as consciências
sejam aliviadas.
A única
utilidade da culpa é nos levar ao arrependimento por um grave erro
cometido. Fora isso, a culpa é extremamente prejudicial. E a vida é
agora. O passado não é a vida. O seu passado está em você, integrou-se a
você. Mas a sua vida é agora!
Morel Felipe Wilkon
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