Lucas, 10:25-37
O vocábulo gente significa quantidade de pessoas, população.
A gente bauruense – quem mora em Bauru.
A gente paulistana – população de São Paulo.
Também é usado para definir o caráter.
Dizemos:
– Fulano é gente!
Exprimimos admiração. Trata-se de um ser humano autêntico, naquilo que
nossa espécie tem de melhor; alguém que prazerosamente consideramos
nosso próximo, nosso irmão.
A língua inglesa possui um vocábulo que bem define essa condição: gentleman.
Pode ocorrer o contrário.
Há pessoas que se comprometem num comportamento tão irregular, em atitudes tão indignas, que somos levados a dizer:
¬– Não é gente!
Situam-se assim os que cometem crimes hediondos, os tiranos, os estupradores, os vândalos, os que se comprazem na maldade.
Causam-nos horror.
Parecem ter perdido a humanidade.
Comportam-se como feras.
***
A expressão também é usada por grupos radicais que, numa visão
estreita e preconceituosa, tendem a aceitar como seus iguais – a sua
gente – apenas os que têm a mesma cor, a mesma crença, a mesma concepção
política, o mesmo time de futebol, a mesma preferência…
Para o branco racista, negro não é gente.
Nos tempos de escravidão, os infelizes africanos eram vendidos como
mercadoria, avaliada sua capacidade de trabalho e sua saúde, como quem
examina o potencial de um animal de carga.
Em contrapartida, para o negro preconceituoso, somente os que ostentam a
mesma cor são irmãos. Em alguns bairros, de população predominantemente
negra, nos Estados Unidos, é temerário branco entrar. Ali não é
considerado gente.
Para os nazistas de triste lembrança, gente era a raça ariana, que
deveria governar o Mundo por mil anos. Os demais povos, pura ralé,
estavam destinados ao domínio alemão.
Gente, para os antigos judeus, eram os filhos da raça – o povo escolhido. Os demais, meros gentios, estrangeiros sem expressão.
Quando Paulo de Tarso se dispôs a disseminar os princípios cristãos, uma
de suas dificuldades foi convencer os companheiros de que os gentios
podiam ser iniciados na nova fé. Também eram gente. Isso porque os
cristãos judeus não admitiam que o Cristianismo transcendesse os limites
da raça.
Outro problema: a circuncisão, que consiste em cortar a pele que cobre a
glande, no pipi da criança. Pretendia-se que o gentio devia deixar-se
circuncidar, por testemunho de sua conversão, algo absurdo, porquanto se
tratava de uma prática do Judaísmo, sem nenhuma relação com o
Evangelho.
Jesus dizia existirem muitas ovelhas, referindo-se às múltiplas raças e
concepções religiosas, mas que ele reuniria todas em torno de seus
ensinamentos.
Idéia absolutamente lógica, considerando-se que o Evangelho é um repositório de leis divinas, de caráter universal.
Isso não significa que todas as religiões o adotem, considerada a
diversidade de culturas e de entendimento, mas haverá algo de seus
princípios em todas elas, destacando-se a lei maior: o amor a Deus acima
de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Então estaremos todos irmanados em torno do Cristo.
***
Não obstante o Evangelho ser, por excelência, contrário às
discriminações, criaram-se em torno dele grupos fechados em concepções
dogmáticas, com interpretações meio à moda da casa.
Chamam-se irmãos entre si. E dizem:
– Quem não comunga nossas idéias não é filho de Deus. Apenas criatura.
Incrível! De acordo com esse disparate, perto de quatro bilhões de
pessoas, dois terços da população mundial, não são gente – apenas
criaturas, seres de segunda classe no contexto universal, simplesmente
porque não nasceram em países cristãos, o que sustenta a estranha idéia
de que a filiação divina obedece à geografia.
Tão radicais foram as facções cristãs no passado que, frequentemente,
trucidavam-se umas às outras, como se a inspiração do Cristianismo fosse
a guerra, não a paz; o ódio, não o amor.
Ainda hoje, embora não haja mais clima para a luta armada, permanece a
tendência de se fecharem os religiosos em suas concepções, julgando-se
detentores da Verdade e considerando gente do Cristo, sua gente, apenas
os que comungam das mesmas idéias.
***
Antes de pretendermos impor nossa posição de gente do Cristo, em
clima de desentendimento, melhor seria que procurássemos definir quem
Jesus considera sua gente.
A resposta a essa pergunta está na Parábola do Bom Samaritano:
Levantou-se certo doutor da lei e, querendo testar Jesus, perguntou-lhe:
– Mestre, que farei para herdar a vida eterna?
Jesus lhe respondeu:
– O que está escrito na Lei? Como lês?
Respondeu-lhe o homem:
– Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma,
de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo
como a ti mesmo.
Então Jesus lhe disse:
– Respondeste bem. Faze isso, e viverás.
Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus:
– E quem é o meu próximo?
Poderíamos traduzir a interrogação assim:
– Quem é meu irmão, ou quem é minha gente?
E Jesus, respondendo, contou uma história:
Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de
salteadores que o despiram, o espancaram e se foram, deixando-o
semimorto.
Descia pelo mesmo caminho um sacerdote, oficiante das cerimônias do
culto judeu. Vendo o homem caído, passou ao largo, evitando envolver-se
com o infeliz.
Pouco depois surgiu um levita, servidor do Templo, da tribo sacerdotal de Levi. Não deixou por menos: desviou-se, dando volta.
Surgiu, finalmente, um samaritano, judeu habitante da Samaria, região da
antiga Palestina. Por motivos religiosos e políticos os samaritanos
sofriam discriminação por parte dos seus irmãos de raça. Não eram gente
para eles.
O mais lógico, portanto, seria passar ainda mais longe do homem caído, evitando complicações em terra hostil.
Contrariando as expectativas, aproximou-se do ferido e cuidou dele.
Colocou-o sobre sua montaria e o levou até uma hospedaria. No dia
seguinte tomou dois denários, importância que daria pelo menos para uma
semana de hospedagem, deu-os ao atendente e recomendou-lhe:
– Trata-o, e na minha volta eu te pagarei tudo quanto despenderes a mais.
Terminando a parábola, Jesus perguntou ao fariseu:
– Qual desses três homens te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?
O doutor da Lei, logicamente, respondeu:
– Aquele que usou de misericórdia com ele.
E terminou Jesus, dizendo:
– Vai e faze tu o mesmo.
***
Fácil concluir quem é gente para Jesus ou quem é sua gente.
São aqueles que estão atentos ao irmão caído na estrada.
Ele pode estar bem perto de nós.
O familiar com problemas…
O colega de serviço sobrecarregado…
O necessitado que nos procura…
O carente na periferia…
O doente no hospital…
O sentenciado na prisão…
É também aquele que nos ofendeu, que nos prejudicou, que nos causou prejuízos…
Haverá queda mais danosa que o mal praticado contra alguém? Altamente
meritório se nos dispusermos a relevar, sem partir para o revide em
pensamento ou ação.
Gente do Cristo age assim.
***
Todos queremos as benesses divinas, sem as quais ficamos perdidos na Terra.
Para tanto é preciso que nos movimentemos nas lides do Bem, amando e servindo, estendendo braços fraternos ao irmão caído.
Só assim demonstraremos que estamos cuidando da gente da Terra, para que a gente do Céu cuide de nós.
Livro Histórias que Trazem Felicidade
Richard Simonetti
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