No terceiro ano de apostolado, que seria o último, Jesus peregrinou pela Peréia, uma das regiões administrativas da Palestina. Solo árido, era menos populosa que a Judéia, a Galiléia e a Samaria.
Os evangelistas não fazem referências específicas às cidades visitadas, mas, como sempre, significativas lições foram ministradas.
Ainda em Cafarnaum, na Galiléia, o Mestre abordou um de seus temas prediletos – o perdão.
Em benefício da causa, os cristãos não deveriam guardar ressentimentos, mágoas, rancores…
Falava, em certo momento, a respeito do assunto, quando Simão Pedro fez a famosa pergunta:
– Senhor, quantas vezes terei de perdoar ao meu irmão que pecar contra mim? Será até sete vezes?
Segundo a orientação rabínica, razoável perdoar as ofensas até três vezes.
Revelando ter assimilado os novos princípios, Pedro, num rasgo de boa vontade, cogitou de elevar esse limite.
Jesus foi além:
– Não te digo sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Evocava o Velho Testamento.
Quando Caim matou seu irmão Abel, por inveja, Jeová, por castigo, o condenou a vagar sem destino.
…Fugitivo e errante serás pela terra (Gênesis: 4-12).
Caim lamuriou-se.
Se partisse sozinho, sem proteção, poderia ser morto por algum desconhecido.
Temor infundado.
Se existiam apenas Adão e Eva; se os dois tiveram como filhos Abel e Caim; se Caim matou Abel, quem poderia ameaçá-lo?
Surpreendentemente, Jeová não levou em consideração esse disparate e proclamou que se alguém o matasse seria castigado até sete vezes.
Caim partiu.
Posteriormente, em outra dessas incríveis contradições do Velho Testamento, encontrou uma mulher e com ela se casou. Depois fundou uma cidade.
Uma cidade!
De onde vieram seus habitantes?
De onde veio a mulher de Caim?
Seriam tripulantes de um disco voador?
Os primeiros extraterrestres?
***
Caim deixou uma descendência.
Seu tataraneto, Lameque, era casado com duas mulheres, Ada e Zilá, numa dessas liberalidades de Jeová com os homens. Podiam ter tantas mulheres quantas pudessem sustentar, o que não era difícil naqueles tempos recuados. Não havia indústria da moda, nem cosméticos…
Lameque era um indivíduo de maus bofes, desses que não levam desaforo para casa. Certa feita, disse às esposas (Gênesis, 4:23-24):
…Matei um homem por me ferir, e um rapaz por me pisar. Se Caim seria vingado sete vezes, com certeza Lameque o será setenta vezes sete.
O troglodita exprimia o espírito de sua época. Espírito de revide, de não levar desaforo para casa, institucionalizado na expressão olho por olho, dente por dente, atribuída a Moisés (Êxodo, 21:24).
Jesus inverte sua proposta e inaugura um novo tempo, com o perdoar setenta vezes sete, que equivale a perdoar sempre.
***
Os Lameques da vida não passam de pessoas com tendência para fazer meleca.
No livro Ação e Reação, de André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, capítulo\ IX, diz Silas, dedicado médico da espiritualidade:
– A ação do mal pode ser rápida, mas ninguém sabe quanto tempo exigirá o serviço da reação, indispensável ao restabelecimento da harmonia soberana da vida, quebrada por nossas atitudes contrárias ao bem...
A bobeira de um minuto pode resultar em decênios de sofrimentos para consertar os estragos que fazemos em nossa biografia espiritual, quando não exercitamos o perdão.
Dois condôminos de um prédio discutiram sobre vagas na garagem coletiva.
Irritaram-se. Gritaram. Ofenderam-se, com a inconseqüência de quem fala o que pensa, sem pensar no que fala.
Como não poderia faltar, cada qual “homenageou” a genitora do outro, atribuindo-lhe aquela profissão pouco recomendável.
Finalmente, o mais forte agrediu o mais fraco.
O mais fraco sacou uma arma e fuzilou o mais forte.
Resultado:
Um para o cemitério, outro para a prisão.
Ambos comprometeram-se infantilmente.
O morto retornou prematuramente à vida espiritual, interrompendo seus compromissos, situando-se em lamentáveis desajustes.
O assassino assumiu débitos cujo resgate lhe exigirá muitas lágrimas e atribulações.
Isso sem falar nas famílias desamparadas…
E se cônjuge e filhos se comprometerem em vícios e desajustes, favorecidos pela ausência do chefe da casa, tudo isso lhes será debitado.
Não raro, esses desentendimentos geram insidiosas obsessões. O morto transforma-se em verdugo, empolgado pelo desejo de fazer justiça com as próprias mãos.
E ninguém pode prever até onde irão os furiosos combates espirituais entre os dois desafetos, um na Terra, outro no Além.
Tudo isso por quê?
Porque erraram na escolha do verbo de suas ações.
Usaram o verbo revidar.
O certo seria o verbo relevar.
Relevar sempre!
Revidar jamais!
Lição elementar, nos ensinos de Jesus.
***
No livro No Mundo Maior, de André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, capítulo X, diz Calderaro, sábio mentor:
– O ódio, diariamente extermina criaturas no mundo, com intensidade e eficiência mais arrasadoras que as de todos os canhões da Terra troando a uma vez. É mais poderoso, entre os homens, para complicar os problemas e destruir a paz, que todas guerras conhecidas pela Humanidade no transcurso dos séculos.
Essas judiciosas observações não dizem respeito apenas às pessoas que revidam ofensas.
Falam também àquelas que, tendo vontade de esganar um ofensor, engolem a própria ira. Bebem o veneno destilado pelo ódio, candidatando-se ao desajuste. O ressentimento mina nossas energias e enfraquece os mecanismos imunológicos.
Há uma quantidade imensa de males físicos e psíquicos resultantes do auto-envenenamento, quando cultivamos mágoas no lar, na rua, no local de trabalho…
O perdão evita que nos nutramos de nosso próprio veneno.
***
Há alguns equívocos.
As pessoas afirmam perdoar. No entanto, há sempre o “mas”, anunciando variadas formas de revide.
Rancor:
• Perdôo, mas não esqueço o mal que me fez!
Condenação:
• Perdôo, mas não quero vê-lo nunca mais!
Menosprezo:
• Perdôo, mas lamento ter me envolvido com esse infeliz, sem eira nem beira!
Maldição:
• Perdôo, mas Deus há de castigá-lo!
Pretensão:
• Perdôo, mas antes lhe direi umas verdades!
Em qualquer dessas alternativas destilamos o ressentimento que nos envenena.
***
Melhor mesmo é não ter que perdoar.
Não é difícil.
A fórmula mágica chama-se compreensão.
Ninguém é intrinsecamente mau. Somos todos filhos de Deus. Não podemos exigir das pessoas mais do que podem dar. Há mais fragilidade que intencionalidade nos prejuízos que nos causam.
A compreensão dispensa o perdão.
Quem compreende não se ofende.
Era o que Jesus fazia.
Livro Setenta Vezes Sete
Richard Simonetti
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