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quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O Profeta - Últimas Palavras

 

Então, já era a noite...


E Almitra, a vidente, disse: "Bendito seja este dia e este lugar e teu espírito que nos falou." E ele respondeu: "Fui eu realmente quem falou? Não era eu também um ouvinte?" Então ele desceu os degraus do Templo, e toda a multidão o seguiu. E dirigindo-se a seu navio, subiu ao convés. E virando-se novamente para a multidão, ergueu a voz e disse: "Povo de Orphalese, o vento me convida a vos deixar. Embora não esteja eu tão apressado quanto o vento, todavia devo afastar-me. Nós, os errantes, que andamos sempre à procura do caminho mais solitário, jamais iniciamos um dia onde encerramos o dia anterior; Nunca a aurora nos encontra onde o poente nos deixou. Mesmo quando a terra dorme, nós viajamos. Somos as sementes de uma planta tenaz, e é quando amadurecemos e atingimos nossa plenitude de coração, que o vento se apodera de nós e nos espalha. Breves foram meus dias entre vós, e mais breves ainda as palavras que pronunciei. Mas se um dia minha voz se desvanecer em vossos ouvidos, e se meu amor se evaporar de vossa memória, então voltarei a vós. E com um coração mais fecundo e lábios mais obedientes à voz do espírito, falar-vos-ei de novo.

Sim, voltarei com a maré, E embora a morte me oculte, e o grande silêncio me envolva, procurarei novamente vossa compreensão. E não procurarei em vão. Se algo do que vos disse for verdade, essa verdade vos será revelada com voz mais sonora e em palavras mais acessíveis ao vosso entender. Vou-me com o vento, povo de Orphalense, mas não descerei ao vácuo do nada; E se este dia não foi a realização de vossas aspirações e de meu amor, fique ao menos como a promessa de um encontro futuro. Transformam-se as necessidades do homem, mas não seu amor, não seu desejo de ver suas necessidades satisfeitas pelo seu amor. Sabei, portanto, que voltarei do meio do silêncio supremo. A neblina, que desaparece ao alvorecer, deixando somente orvalho nos campos, eleva-se, condensa-se em nuvem e cai sobre a terra como chuva. E não diferente da neblina tenho sido eu. Na calma da noite passeava em vossas ruas, e meu espírito penetrava em vossas casas. O pulsar de vossos corações repercutia no meu coração, e vosso hálito flutuava sobre meu rosto, e assim vos conheci a todos. Sim, conheci vossas alegrias e vossas mágoas; e quando dormíeis, vossos sonhos eram meus sonhos. E muitas vezes estive entre vós como um lago no meio das montanhas. E minhas águas refletiam os cumes que se elevam em vós e as vertentes inclinadas e os rebanhos errantes de vossos pensamentos e de vossos desejos. E ao meu silêncio afluíram, como torrentes, os risos de vossas crianças e, como rios, as ânsias de vossos adolescentes. E quando atingiam a minha profundidade, as torrentes e os rios continuavam a cantar. E todavia, algo mais terno que o riso e maior que as ânsias veio a mim. Era o ilimitado em vós; O imenso homem do qual sois meras células e músculos; Ele, em cujo cântico todas vossas canções nada mais são do que murmúrios indistintos. É nesse homem grandioso que vós sois grandiosos. E foi contemplando-o que aprendi a vós contemplar e amar. Pois, que distâncias pode o amor atravessar, que não estejam contidas nesta imensa esfera? Que visões, que esperanças, que presunções podem elevar-se acima desse vôo? Como um carvalho gigante recoberto de flores de macieira, é o homem imenso que está em vós. Sua potência vos liga à terra, sua fragrância vos eleva no espaço, e sua durabilidade vos dá a imortalidade. Disseram-nos que, como uma corrente, vós sois tão frágeis quanto vosso elo mais frágil. Essa é somente a metade da verdade. Vós sois, também, tão fortes quanto vosso elo mais forte. Medir-vos pelas vossas pequenezas é avaliar o poder do oceano pela inconsistência de sua espuma. Julgar-vos pelas vossas falhas é como censurar as estações pela sua instabilidade. Sim, vós sois como um oceano, E embora os navios encalhados sobre vossas costas esperem o fluxo da maré, não podeis acelerar vossos fluxos. E sois também como as estações. E embora em vosso inverno negueis vossa primavera, A primavera, que descansa dentro de vós, sorri na sua letargia e não se ofende. Não penseis que digo essas coisas para que repitais um ao outro: "Ele nos elogiou bastante. Ele só viu nossas qualidades." Eu somente expresso em palavras o que já sabeis em pensamento. E o que é o saber expresso em palavras, senão a sombra do saber sem palavras? Vossos pensamentos e minhas palavras são ondas que rolam de uma memória selada que guarda o registro de vosso passado, E dos dias em que a terra nos ignorava e ignorava-se a si mesma, E das noites em que a terra era criada na confusão. Muitos sábios vieram oferecer-vos sua sabedoria. Eu vim tomar de vossa sabedoria. E eis que encontrei o que é superior à sabedoria: Um espírito em fogo que se alimenta de si próprio e cresce constantemente, Enquanto vós, desatentos a esse crescimento, lastimais a consumação de vossos dias. É a vida à procura da vida em corpos temerosos da sepultura. Não há sepulturas por aqui. Estas montanhas e planícies são berços e alpondras. Cada vez que passais pelo campo onde enterrastes vossos antepassados, olhai bem e vereis a vós e a vossos filhos dançando de mãos dadas. Na verdade, vos regozijais muitas vezes sem sabê-lo. Outros vos têm procurado, a quem, em troca de promessas douradas, só destes riquezas, poder e glória. Eu vos tenho dado menos que uma promessa, e, no entanto, fostes mais generosos comigo. Destes-me uma sede mais profunda de viver. Certamente não se pode fazer dom maior a um homem que converter seus desígnios em lábios ávidos, e toda a vida n um manancial. E nisto consiste minha honra e minha recompensa, Que toda vez que venho à fonte para beber, encontro a própria água sedenta; E ela me bebe enquanto a bebo. Certos entre vós me têm julgado demasiadamente orgulhoso e reservado por haver recusado presentes. Embora me tenha nutrido de bagas entre as colinas, quando vós me queríeis instalar à vossa mesa, E tenha dormido nos pórticos do templo, quando me teríeis abrigado com prazer, Contudo, não foi vossa carinhosa preocupação com meus dias e noites que tornou meus alimentos deliciosos e povoou meu sono de visões? Abençôo-vos particularmente por isto. Vós dais muito, e não sabeis que dais. Na verdade, a bondade que se mira n um espelho converte-se em pedra. E uma boa ação que se admira a si própria vira maldição. E alguns dentre vós me acharam distante e embriagado com minha solidão. E dissestes: "Ele reúne-se com as árvores da floresta, mas não com os homens. Senta-se sozinho no cume das colinas e olha do alto para nossa cidade." É verdade. Galguei colinas e andei em lugares afastados. Como vos teria podido ver a não ser de grandes alturas ou de grandes distâncias? Como pode alguém estar perto se não estiver longe? E outros entre vós me chamaram, mas não em palavras, e disseram: "Estrangeiro, estrangeiro, apaixonado pelas alturas inacessíveis, por que habitas nos cumes onde as águias constroem seus ninhos? Por que corres atrás do inatingível? Que tempestades esperas apanhar na tua rede, E que aves vaporosas procuras caçar nos céus? Vem e sê um de nós. Desce e satisfaze tua fome com nosso pão e aplaca tua sede com nosso vinho." Na solidão de suas almas, disseram todas essas coisas; Mas se sua solidão tivesse sido mais profunda, teriam compreendido que eu procurava somente o segredo de vossa alegria e de vossa tristeza, E que caçava apenas vossos "Eus" mais amplos que vagueiam nos espaços. Mas o caçador era também a caça; Pois muitas de minhas flechas partiram do meu arco apenas à procura de meu próprio coração. E aquele que pairava nas alturas era o mesmo que se arrastava no chão; Pois, quando minhas asas se desdobravam ao sol, sua sombra projetada na terra era como uma tartaruga. E eu, o crente, era também um cético; Pois, constantemente, punha meu dedo no meu próprio ferimento com o propósito de fortalecer minha crença em vós e aumentar meu conhecimento sobre vós. E é com essa crença e esse conhecimento que vos digo: Vós não estais enclausurados em vossos corpos, nem confinados em vossas casas ou campos. O que sois reside acima das montanhas e erra com o vento. Não é algo que rasteja ao sol para aquecer-se ou cava buracos na escuridão para se proteger. Mas, sim, algo livre, um espírito que envolve a terra e se movimenta no éter. Se essas forem palavras vagas, não as procureis esclarecer. Escuro e nebuloso é o começo de todas as coisas, mas não seu fim; E eu prefiro que vos lembreis de mim como de um começo. A vida, e todos os seres vivos, são concebidos na névoa e não no cristal. E quem sabe se um cristal não é uma névoa em decomposição? Quando vos lembrardes de mim, assim gostaria que vos lembrásseis: Que aquilo que parece o mais fraco e desorientado em vós é, na realidade, o mais forte e determinado. Não foi vosso fôlego que ergueu e solidificou a estrutura de vossos ossos? E não foi um sonho que nenhum de vós recorda haver sonhado, que edificou vossa cidade e modelou tudo o que nela existe? Se vos fosse facultado ver as marés desse fôlego, deixaríeis de olhar para outra coisa, E se vos fosse facultado ouvir os murmúrios desse sonho, deixaríeis de ouvir todo outro som. Mas vós não vedes nem ouvis, e é melhor assim. O véu que cobre vossos olhos será retirado pela mão que o teceu. E a argila que obstrói vossos ouvidos será rompida pelos dedos que a amassaram. Então vereis. Então ouvireis, E não deplorareis ter conhecido a cegueira e a surdez. Pois naquele dia, compreendereis a finalidade oculta de todas as coisas, E abençoareis as trevas como abençoais a luz." Tendo dito essas coisas, voltou-se e viu o piloto de seu navio postado ao leme, fitando ora as velas desenroladas, ora o horizonte. E ele disse: "Paciente, muito paciente, é o capitão de meu navio. O vento sopra, e as velas estão enfunadas. Mesmo o timão pede que o orientem. Porém, meu capitão espera calmamente pelo meu silêncio. E esses meus marujos que têm ouvido o coro de oceanos mais vastos têm-me também ouvido pacientemente. Agora, não esperarão mais. Estou pronto. O rio já atingiu o mar, e mais uma vez a grande mãe aperta seu filho contra seu peito. Adeus, povo de Orphalese. O dia já se foi. E está se cerrando sobre nós, como o nenúfar se cerra sobre seu próprio amanhã. O que aqui nos foi dado, nós o conservaremos. Mais um curto instante e minha nostalgia começará a recolher argila e espuma para um novo corpo. Mais um curto instante, mais um descanso rápido sobre o vento, e outra mulher me conceberá. Meu adeus a vós e à Juventude que passei entre vós. Foi somente ontem que nos encontramos num sonho. Cantastes para mim na minha solidão, e eu, com vossas aspirações, construí uma torre no céu. Mas agora, nosso sono fugiu, e nosso sonho desvaneceu-se, e já não é mais a aurora. O meio-dia nos abrasa, e nossa sonolência transformou-se em pleno despertar, e devemos nos separar. Se nos encontrarmos outra vez no crepúsculo da memória, conversaremos de novo e cantareis para mim uma canção mais profunda. E se nossas mãos se encontrarem noutro sonho, construiremos mais uma torre no céu." Dizendo isto, acenou aos marujos, e eles levantaram ferro, soltaram as amarras e rumaram para leste. E um grito reboou da multidão como de um só coração, elevou-se no crepúsculo e voou longe sobre o mar, qual doloroso apelo de trombeta. Somente Almitra permaneceu silenciosa, fixando o navio até que desapareceu no nevoeiro. E mesmo quando todos se haviam dispersado, ela ainda estava lá, sozinha, em pé sobre o quebramar, rememorando no seu coração as últimas palavras de Al-Mustafa: "Mais um curto instante, mais um descanso rápido sobre o vento, e outra mulher me conceberá." 

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