O ANEL DE GIGES

 

A Professora Lúcia Helena Galvão fala sobre o mito do Anel de Giges, de Platão, e como isso reflete (e é bem atual) na nossa sociedade.

Giges era um pastor lídio e se diz que era um homem reconhecido na sua sociedade como muito honesto. Uma ocasião ele estava pastoreando as suas ovelhas, e teria encontrado uma espécie de um túmulo onde havia um guerreiro antigo ou algo assim, que ele tinha no dedo um anel com uma pedra. E Giges retira esse anel do dedo desse cadáver e coloca no seu próprio dedo. Quando ele participa das assembleias dos pastores, ele percebe uma coisa curiosa, que cada vez que ele vira essa pedra para dentro da mão ele se torna invisível. As pessoas começam a perguntarem entre elas: Onde foi o Giges? Giges estava aqui agora mesmo, sumiu. E depois ele vira a pedra para fora, volta a aparecer. Aí, são colocadas duas possibilidades: a primeira delas é que Giges, usando o anel como ele era um homem reconhecido como honesto, depois ele quebra totalmente esse comportamento, se torna uma pessoa libertina, uma pessoa desonesta, uma pessoa que rompe com todas as tradições morais da sociedade, seduz a rainha, mata o rei, faz tudo que você possa imaginar.

E aí vem aquela questão fundamental que a gente sempre coloca: O que faríamos nós com esse anel de Giges na mão? Basicamente, essa é uma questão que perdura ao longo da história. Mas Platão vai mais além. Ele imagina o seguinte: Imagine a segunda possibilidade, em que Giges usando esse anel continuasse tão honesto quanto ele era antes. O que as pessoas ao saber disso pensariam? Imagine que a princípio, em conjunto, em comunidade elas elogiariam demais. “Nossa, que maravilhoso é o Giges, que homem íntegro!” Por medo de que ele, invisível, pudesse provocar algum mal a elas. Mas, uma vez que elas estivessem a sós, quando a última porta se fecha atrás delas elas diriam: “Que tolo, que idiota que é o Giges. Se esse anel estivesse na minha mão eu me daria muito bem”. Ou seja, no fundo ele vai deduzir que nós não amamos a justiça, não amamos a ética. Nós praticamos, simplesmente, por um interesse social, porque de uma certa maneira, se todos formos injustos, vai que alguém tem condições maiores do que a minha, é mais esperto, é mais inteligente, seja lá o que for, e eu sofro um dano maior do que aquele que eu sou capaz de provocar? Portanto, eu tenho prejuízo. Então, nós fazemos um acordo entre nós: “Eu não te roubo, você não me rouba. Eu não te causo nenhum mal, você não me causa nenhum mal”. Mas, se houver um anel de Giges, aí que mal tem, não é? Lógico que cada um vai tirar as suas vantagens.

O que eu acho interessante comentar é que a gente, realmente, tem esses anéis de Giges. Eles existem, de fato. Como, por exemplo, no pensamento humano. Nós achamos que é muito impune aquilo que a gente pensa. Que qualquer pessoa pode pensar qualquer coisa. Não é visto, não é contemplado em sociedade. Portanto, aí você tem o anel de Giges, que na verdade é uma ilusão. Porque da mesma maneira que Platão fala que nós temos um plano das idéias e um plano concreto, tudo aquilo que vive reiteradamente no plano das idéias tensiona o mundo manifesto para vir à Vida. Portanto, se você alimenta repetidamente uma idéia, numa fresta de desatenção ela vai vir à Vida e vai gerar um fato na sua vida, mais cedo ou mais tarde. E também um outro anel de Giges, que é bastante comum, que a gente pode ver em sociedade, é o Poder. Se eu tenho o Poder eu me sinto numa situação onde eu posso fazer o que eu quiser e sou totalmente protegido por esse Poder. Não posso receber uma contrapartida à altura. Então, eu me sinto muito à vontade, mais do que se poderia, do que se deveria, para manifestar aquilo que eu sou. Daí que muitas vezes se pensou na história que o poder é algo que corrompe, é algo que traz à tona aquilo que o homem tem de pior. Isso é uma coisa com a qual eu, legitimamente, não concordo. Não acho que seja assim. Existe uma frase de um escritor brasileiro, que eu gosto muito (que eu considero como um filósofo) que é Machado de Assis, ele tinha reflexões excelentes e uma das suas frases famosas era o seguinte: “É errada a frase que diz que a ocasião faz o ladrão. A ocasião faz o crime, o ladrão já nasce feito”. Então, de uma certa maneira, se eu guardo dentro de mim uma intenção de tirar proveito do outro de maneira fácil, o Poder vai trazer à tona isso, vai potencializar essa minha tendência. Agora, se eu trago dentro de mim um pacto com a minha consciência de integridade, de lisura, de honestidade, o Poder vai potencializar isso que eu tenho. Ele não vai inventar, em mim, uma falta de ética. Ele vai, simplesmente, trazer à tona aquilo que eu tenho. Agora, como muitas vezes a nossa ética, nossa justiça é mais uma ética de coerção do que de convicção, evidentemente, o Poder vai potencializar uma tendência a tirar proveito das situações. Mas, se eu tivesse dentro de mim uma ética por convicção, logicamente, eu continuaria fiel a essa ética, que é a grande questão, a grande dualidade ética que eu sempre gosto de falar. Nós consideramos muito, como diz Hobbes no Leviatã e outros autores, que nós temos um contrato social, onde todos nós firmamos um hábito para tornar a vida em sociedade viável, de não causarmos danos uns aos outros.

Tem uma frase de um outro filósofo que eu gosto bastante, que é Francis Bacon. Ele fala sobre a Esperança (não tem nada a ver com a história, mas tem muito a ver, no final das contas). Ele diz que “A Esperança é um ótimo almoço, mas um péssimo jantar”. Na hora do jantar já era para você estar fazendo alguma coisa, e não só esperando. Eu, também, acho que esse contrato social, esse pacto social é um ótimo almoço, mas na hora do jantar você já deveria ter consciência social, não é? Ou seja, a ética não deveria ser só uma coerção – que você faz por medo ou desejo – já deveria ser uma convicção, onde as pessoas fazem pelo que são, ou seja, pelo aquilo que acreditam, porque consideram que é digno de ser um Ser Humano agir dessa maneira. Porque senão nós temos exatamente o que Platão fala: uma sociedade eternamente vigiada para ser ética, para ser honesta, para ser justa. Nunca chegamos a uma situação de uma sociedade regida pela consciência humana, ou seja, pela convicção: “Ainda quando a última porta se fecha atrás de mim, eu continuo sendo ético”.

Fonte: VirtualFilosofia

Saindo da Matrix


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