Irene se preparou cuidadosamente. Fez o possível para melhorar sua aparência, vestiu sua melhor roupa, escolheu seus adereços mais caros. Finalmente ficou pronta. Olhou-se no espelho. Apesar de haver feito o que podia, não gostou do que viu. Seus cabelos não estavam brilhantes, suas faces pareciam-lhe sem vida apesar da excitação. Seu vestido não lhe caía como gostaria. Por que não saíra para comprar um novo? Olhou no relógio. Agora não daria tempo. Precisava conformar-se em ir como estava. Faltava apenas meia hora para o encontro. Como esperara por aquele momento! Tanto tempo fazia e era como se nada houvesse mudado. Seu coração descompassava-se da mesma forma, suas pernas tremiam como naquele tempo, a mesma tensão, a mesma ansiedade.
Vinte anos depois. O que ele desejaria? Com certeza pedir-lhe perdão. Dizer-lhe que se arrependera. Mas ela teria coragem de perdoar? De esquecer aqueles anos de depressão e constrangimento? A sensação desagradável do fracasso reapareceu aguda. Sentiu-se novamente na igreja, vestida de noiva, nervosa, carregando o buquê de botões de rosas brancas, caminhando sem sentir os pés tocarem o chão. Seu amor de tantos anos! Ele estava lá, bonito, elegante, sério. Sua fisionomia fechada e seus olhos sem brilho pareciam distantes. Por que ela não percebera nada? Por que não recuara naquele instante? Mal se lembrava das palavras do padre na cerimônia. Queria que tudo acabasse logo. Fez tudo como havia ensaiado. Seu vestido de cetim de longa cauda não a impediu de deslizar elegante num farfalhar delicado. Ao sair da igreja de braço com o marido, sentia-se vitoriosa. Havia conquistado o mundo! Na festa, percebeu que o marido estava pensativo e nervoso. Finalmente a hora tão esperada da viagem. Rodeada de amigas que preparavam o seu bota-fora, em meio às brincadeiras, Irene trocou de roupa e colocou os últimos objetos na mala. Tudo pronto, esperou. Esperou, esperou. As amigas se foram, o dia estava amanhecendo e ela esperava silenciosa, pronta. Era a própria imagem do desconforto. Por que ele se demorava tanto? Fora apenas apanhar a mala. Quando o dia clareou, um mensageiro trouxe a carta. Ela leu várias vezes para entender o que ele lhe escrevera: Irene, sinto muito. Mas não dá para levar avante nosso casamento. O que aconteceu entre nós foi um acidente. Eu não queria prejudicá-la, mas a proximidade, seu amor por mim, envolveu-me e eu fraquejei. Eu não queria casar. Sabia que não a amava para isso. Mas seu pai me obrigou. Ameaçou-me de morte. Propus dar o nome para nosso filho quando nascesse, mas ele não aceitou. Disse que não queria que você fosse mãe solteira. Não tive como recusar. Casei, mas ninguém vai me obrigar a viver em sua companhia. Não me procure porque não voltarei nunca mais. Adeus. Eduardo Finalmente entendeu. A vergonha, o fracasso tornaram-na fria e dura. Brigou com o pai e ficou longo tempo sem sair de casa e sem receber ninguém. Sua vida estava acabada! Preocupados, seus pais mudaram de cidade, e ela passou a dizerse viúva. Quando seu filho nasceu, ela proibiu a família de contar-lhe a verdade. Armando acreditou que o pai houvesse morrido em um acidente de carro antes de ele nascer. Nunca mais namorou. Seu coração estava fechado. Havia jurado que nunca mais sofreria por homem algum. Eduardo nunca lhe contara a verdade. Nunca lhe dissera que não pretendia se casar nem que seu pai o estava obrigando. Se soubesse, não teria concordado com o casamento. Vinte anos e ela não conseguia atirar fora aquela sensação de fracasso, de rejeição, que lhe queimava as faces fazendo-a estremecer de vergonha. Atirou-se ao trabalho e conseguiu independência financeira. Mudou-se para uma casa própria em São Paulo, onde dividia seu tempo entre o filho e o escritório de uma grande empresa em que ocupava um cargo destacado. Vendo-a sempre só, disposta a cortar qualquer relacionamento amoroso, seus amigos acreditaram que Irene continuava amando o marido morto. Quando alguém fazia referência a isso, ela sorria e em seus olhos passava uma chama de rancor que procurava ocultar. Muitas vezes Armando perguntava-lhe como era o pai. Olhando o retrato de casamento em um belo porta-retratos que ela mandara colocar na sala, ela sorria e descrevia o homem que ela gostaria que ele houvesse sido. O filho ouvia enlevado. Nunca desconfiara de nada. Naquela manhã, ao atender o telefone, estremecera. O tempo não a havia feito esquecer aquela voz! — Irene, sou eu, Eduardo. Preciso falar-lhe urgente. A voz fugiu, o ar faltou, ela pensou que fosse desfalecer. — Está ouvindo, Irene? É você? Preciso lhe falar. Ela se esforçou para dominar-se. Engoliu a saliva, respirou fundo e conseguiu dizer: — Você? O que quer? — Falar-lhe. — Para quê? Depois de tanto tempo? — Por favor. É urgente. — Não temos nada a nos dizer. Passou muito tempo! — Eu sei. Custei a encontrar seu endereço. — O que pretende? — Falar-lhe. Vamos marcar um encontro para conversar. — Não sei. Acho melhor não! — Por favor, precisamos conversar. Me atenda! Ela ficou silenciosa durante alguns segundos, depois decidiu: — Está bem. Onde? — Passarei em sua casa às oito para apanhá-la. — Em minha casa não. — Na esquina da sua casa então. — Sabe onde fica? — Sei. Às oito estarei lá. Meu carro é cinza. — Está certo. Irei. Irene olhou o relógio e suspirou angustiada. Faltavam dez para as oito. Armando saíra com amigos. Olhou-se no espelho mais uma vez. Como gostaria de ser linda, elegante, maravilhosa, para poder vingar-se dele naquela hora. Para ver em seus olhos o arrependimento por havê-la perdido! Contudo, ela não se achava bonita. Seus amigos diziam, era sempre muito requisitada pelos homens, mas era porque ela era independente, bem na vida e indiferente. Eles gostavam de conquistar uma mulher difícil. Só por isso a rodeavam. Se ela cedesse, tinha certeza de que logo a colocariam de lado. Ela jurara que nunca mais haveria de ser rejeitada por ninguém. Trincou os dentes com raiva. Por que Eduardo a estaria procurando depois de tantos anos? Seu filho não podia saber. Ela nunca permitiria que eles se aproximassem. Ele o havia rejeitado e agora não tinha o direito de perturbar sua vida. Ela não iria permitir. Olhou pela janela e viu um carro cinza parado na esquina. Seu coração bateu mais forte. Era ele, certamente. Apanhou a bolsa e desceu as escadas. Suas pernas tremiam. Foi à copa e tomou alguns goles de água. Tinha que se controlar. Ele não podia saber o quanto ela havia sofrido. Respirou fundo, compôs a fisionomia e deu uma olhada no espelho do hall. Seu rosto estava calmo. Ele não desconfiaria de nada. Com gestos estudados, saiu, fechou a porta e dirigiu-se ao carro parado na esquina. Ao aproximar-se, a porta abriu. Irene olhou e Eduardo pediu: — Entre, por favor. Ela sentou-se fechando a porta. Olharam-se. Ela notou alguns fios de cabelos brancos nas têmporas. Olhos ansiosos, ele agradeceu: — Obrigado por ter vindo. — Vamos sair daqui, conversar em outro lugar — propôs ela. Ele ligou o carro e saiu. Rodaram algum tempo em silêncio. — Talvez possamos ir a algum lugar, tomar alguma coisa e conversar. — Não pretendo me demorar. Podemos conversar aqui mesmo. — Como queira. Era uma rua calma em um bairro residencial. Eduardo parou sob uma árvore. Olhou-a sério, depois fez um elogio: — Você está muito bem. Venceu na vida. Ela o olhou tentando entender. — É. Venci. — Nunca pensei. Você parecia tão ingênua, tão sem iniciativa. Informei-me e sei que ocupa um cargo importante na empresa. — É verdade. Mas vamos ao assunto: por que me procura depois de tantos anos? — Bem, quero que saiba que eu me arrependi do que lhe fiz. Para ser sincero, eu não queria mesmo ir embora, mas a Neusa me pressionava, ameaçava fazer um escândalo se eu a largasse. Fiquei com medo. Seu pai não era de brincadeira. Eu tinha dois filhos com ela. O jeito mesmo era ir embora. Foi o que fiz. Irene o olhava surpreendida, como se o estivesse vendo pela primeira vez. Ele não era o homem que guardava na lembrança. Estava malvestido, roupa surrada, cheirando a suor. Tinha um modo grosseiro de falar, muito diferente das pessoas às quais estava acostumada. Como ele havia mudado! Ela havia se preparado para cobrar-lhe de alguma forma o passado, mas, vendo-o agora, não sentia vontade de mais nada. Sua raiva evaporou-se. Não conhecia aquele homem. Era um estranho a quem ela nunca havia amado. Vendo-a em silêncio, ele fez um ar compungido e perguntou: — Você ainda está com raiva de mim? — Não. Na verdade, não — respondeu ela com certo alívio. — Ainda bem que entendeu. É importante para mim que tenha me perdoado. — Você ainda não disse por que me chamou aqui. — Bem, sabe como é. As coisas andam difíceis para mim. Estou desempregado, meus filhos estão trabalhando, mas ganham pouco. Pensei que você pudesse me ajudar. Irene olhou-o pasmada. Estaria ouvindo bem? — Não estou entendendo — emendou. — Você está me pedindo um emprego? — Não. Não tenho muita saúde. Meu filho pretende trabalhar na sua empresa. É um cargo bom, ele é muito capaz, tem todos os diplomas, é estudado. Preencheu a ficha, mas está difícil. Foi ele quem no outro dia me mostrou você na confeitaria, contando que era a chefona daquela empresa. Eu a reconheci logo! Puxa vida! Mas fiquei quieto. Ele não sabe de nada. É um bom moço, trabalhador, sabe? Ele sustenta a casa, já que eu não posso trabalhar muito e a mãe é doente. Se ele conseguir esse emprego, nossa vida vai melhorar. Irene olhou aquele homem maneiroso, malcheiroso, reticencioso, e de repente a tensão se rompeu. Ela começou a rir, a rir. Ele, assustado, não sabia o que dizer. Irene ria, ria sem parar. Abriu a porta do carro e saiu. Respirou o ar puro com satisfação. Seus olhos brilhavam de alegria. Parecia-lhe ser adolescente de novo. Ele, surpreendido, saiu do carro e aproximou-se, fixando o olhar nela. Irene esforçava-se para segurar o riso. — O que foi? Eu disse alguma coisa engraçada? — ele perguntou. — Não. Não disse nada. — Não estou entendendo. Então, por que está rindo tanto? — Estou rindo de felicidade. Sou a mulher mais feliz do mundo. Estou livre! Ele olhou-a sem entender. Ia pronunciar algo, mas ela tornou: — Vou embora. — Estamos longe de sua casa. Vou levá-la de volta. — Não é preciso. — E… quanto ao emprego para o meu filho? — Verei o que posso fazer. Se ele realmente preencher os requisitos para o cargo, eu o recomendarei. Mas, veja bem, só se ele for competente mesmo. Ele sorriu maneiroso: — Isso ele é. Não vai se arrepender. É trabalhador, sério. Obrigado mesmo. Relutei um pouco em vir a este encontro. Temia estragar tudo. Você poderia querer vingar-se de mim. Tinha a faca e o queijo nas mãos. Felizmente não foi assim. Muito obrigado! — Não me agradeça. Quando você me deixou, fez um favor enorme. Estou apenas retribuindo. Em troca, peço-lhe outro favor. — Fale. Farei tudo o que quiser. — Nunca mais me procure. Esqueça meu endereço e que me conheceu. — Se quer assim. — Adeus — despediu-se ela, estendendo a mão com firmeza, que ele segurou frouxamente. — Adeus — respondeu Eduardo. Irene foi andando contente. Sentia-se leve, alegre, feliz. Estivera cega durante vinte anos. Carregara uma ilusão, frustrara-se com ela, subestimara-se. Nada disso era verdade. Ela não era a mulher rejeitada, malquerida que julgava ser. Ela era forte, capaz. Pela primeira vez teve consciência da própria força. Criara seu filho com decência e bons hábitos. Ajudara-o a desenvolver seus talentos. Construíra seu mundo, com conforto, beleza e respeito. A passos firmes, Irene atravessou a avenida e tomou um táxi. Estava arrumada e não voltaria para casa. Procuraria alguns amigos para distrair-se. Deu o endereço ao motorista e acomodou-se gostosamente no assento macio. Estava livre! Dali para frente tudo seria diferente. Sua vida poderia até ser a mesma, já que tudo estava muito bem, mas ela… ela, sim, estaria aberta à alegria e à felicidade.
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