O encosto

 

Gustavo Barroso

 Em um tempo remoto, havia numa pequena cidade do interior de São Paulo um casal de lavradores que se interessava em construir uma vida digna dentro de suas possibilidades. Desde o primeiro dia em que se encontraram, houve o amor e logo depois de curto namoro estavam casados, abençoados pelo padre, com papel passado e tudo. Ronaldo conseguiu arrendar um alqueire de terra boa, construiu nele um rancho de sapê, com carinho e dedicação, ajudado de perto por Angélica, onde foram residir depois da cerimônia simples do casamento. Sonhos, projetos, eles tinham vários. Lavrar a terra para retirar dela o sustento e também comercializar o que produzissem.

 Queriam progredir, construir uma casa melhor para os filhos que haviam de vir. Seu Rogério era o dono das terras a quem Ronaldo devia pagar o arrendamento que contratara em espécie. Dinheiro era difícil e ele fez tudo para conseguir negociar o pagamento em milho e feijão, que era o que ele pretendia plantar naquelas terras. O jovem casal, cheio de entusiasmo e planos para o futuro, dedicou-se de corpo e alma ao trabalho de sol a sol e logo os grãos começaram a brotar na terra e se transformar em plantas viçosas e produtivas.

 Tudo ia bem, o primeiro filho já havia nascido, forte e bonito. Angélica levantava cedo, cuidava das galinhas, do porco que estavam engordando para o fim do ano, cuidava do filho, que felizmente era tranquilo e dormia o tempo todo. “A vida cuida de ensinar a todos nós como viver melhor.” A vida deles decorria tranquila, até que uma noite o Ronaldo adormeceu e sonhou. Estava em um lugar muito frio e cinzento e ele imediatamente sentiu-se angustiado. Parecia-lhe estar sendo perseguido. Sabia que havia alguém desejando pegá-lo, mas não conseguia ver quem. Fazia tremendos esforços para fugir sem conseguir. A cada momento sentia a angústia aumentar.

 Queria gritar, pedir ajuda, porém não conseguia. Até que por fim Angélica o sacudiu e ele acordou aliviado. — Você estava gemendo — explicou ela. — Achei que devia ser um pesadelo. — Era mesmo. Nem sei explicar o que foi. Alguém me perseguia e eu não conseguia escapar. — Quem era? — Não sei. A partir daquela noite, Ronaldo começou a sonhar sempre o mesmo sonho. Quando tudo começava, ele até sabia o que ia acontecer. Por causa disso, começou a ter medo de dormir. — Isso é só um pesadelo — confortava-o Angélica. — Você está impressionado. — Não é isso, não. Acho que nessa história tem alma do outro mundo. — Cruz-credo. Nem diga isso! — Pois tem, sim. Tem um perseguidor que todas as noites vem atrás de mim. — É impressão sua. Quem haverá de perseguir você em sonho? — Não sei. Ainda não consegui ver. Mas que tem, tem. E ninguém me tira da cabeça que é alma do outro mundo. — Nesse caso tem de ir se benzer no seu vigário. — Tem razão. Domingo cedo vamos falar com ele.

 O padre José ouviu a história do Ronaldo e, quando ele terminou, asseverou: — Você está impressionado. Alma do outro mundo não tem permissão para vir perseguir as pessoas no mundo. Isso é crendice do povo. Reze, meu filho, para Deus tirar isso de sua cabeça e tudo voltará ao normal. Ronaldo fez tudo como o padre falou, mas o problema continuou. Angélica conversou com sua mãe dizendo angustiada: — Ronaldo não é mais o mesmo. Não trabalha como antes. Não dorme de noite e depois fica sem coragem de levantar no dia seguinte. Ontem, quando eu fui levar o almoço na roça, ele estava dormindo embaixo da mangueira. Isso está me preocupando. Não pode continuar. Quando vier a colheita, não vamos ter com que pagar seu Rogério nem o que comer. Ele não está aguando direito, e a plantação está secando. — Olha, minha filha, isso não é caso para o padre José, não. Isso é caso para o seu João. — Ele é mandingueiro, mãe. — Ora essa! E se o que o Ronaldo tem for mandinga? Tem muita gente com inveja da felicidade de vocês.

 Ainda outro dia a comadre Antônia reclamou dizendo que a Mariinha não teve a sua sorte com o casamento. O marido dela é preguiçoso e não sai da venda do seu Manuel tomando cerveja e bestando. — Não acho que seja inveja, mãe. Nós não temos nada para os outros terem inveja. Somos pobres e lutamos com a vida. — Como você é ingênua! Claro que tem gente invejosa. Se eu fosse você, tratava de levar o Ronaldo na casa do seu João antes que tudo fique pior. Angélica saiu de lá pensativa. As palavras da mãe não lhe saíam da cabeça.

 Chegando em casa tentou falar com Ronaldo, porém ele não quis ouvir. — Inveja? Que bobagem! Quem poderia invejar vida de pobre como nós? — Mãe acha que seu caso é para seu João, que ele pode dar jeito. — Não quero me meter com esse curandeiro. Seu vigário disse que esse negócio de espíritos é muito perigoso. — Não foi você quem falou que estava sendo perseguido por uma alma do outro mundo? Então. Esse é um caso para ele. Ronaldo não concordou.

 Ele não desejava se meter com essa coisa de espiritismo. Contudo, com o correr dos dias, ele foi ficando pior. Como tinha medo de dormir à noite, e quando dormia durante o dia não era incomodado pelo pesadelo, ele trocou o dia pela noite. Como não podia trabalhar à noite na plantação, o trabalho foi ficando sem fazer, o mato começou a crescer e os recursos a escassearem. Uma tarde Angélica não aguentou mais e foi procurar seu João

. O curador ouviu toda a história e ao final respondeu: — Manda ele vim. Se ele não quiser, não posso fazer nada. Ele é quem está passando pelo problema. Ele é que tem que vim. Fala isso para ele. Angélica voltou para casa desanimada. Ele não ia querer ir. Contudo, olhando o estado calamitoso da plantação, tomou uma resolução. Foi até onde ele estava dormindo na rede e o sacudiu com força. — Acorda, Naldo. Vamos embora. — Hein?! O quê?! Vamos aonde? — resmungou ele, ainda atordoado de sono. — À casa do seu João. Chega de ficar dormindo desse jeito em pleno dia

. Vamos acabar com isso é já. Ele esboçou um gesto de contrariedade, mas o tom dela não admitia resistência. Ela, que sempre fora delicada e falava baixinho, olhava-o com olhos indignados, ar decidido, atitude firme. Ele obedeceu. Nunca a vira daquele jeito. Na casa do João, enquanto esperavam, ele sentia-se nervoso e de vez em quando fazia menção de sair. Entretanto, Angélica segurava fortemente o seu braço e o olhava com ar tão decidido que ele não se atrevia. Seu João entrou na sala e parou na frente dele.

Era um mulato forte, traços rudes, gestos suaves, descalço, trajando roupas simples dos homens do campo, mas seus olhos eram brilhantes e, quando se fixaram em Ronaldo, ele estremeceu e levantou-se fazendo menção de sair. João colocou as mãos nos ombros dele obrigando-o a sentar-se. Depois ordenou com voz firme: — Você vai deixar o Ronaldo em paz. Ronaldo sacudiu a cabeça negativamente e seu João continuou: — Precisa entender que agora não é seu tempo. Você deve ir embora. Ele precisa cuidar da família e preparar tudo para os que virão. Ronaldo estremeceu e retrucou com voz entrecortada: — Não vou fazer isso. Ele conseguiu e eu não. Por que essa proteção? Em que ele é melhor do que eu? — Ninguém é melhor do que ninguém. Acontece que cada pessoa tem um destino a cumprir. Ele precisou nascer com essa missão. Você precisa ficar aí ainda mais um tempo. — Não é justo. Ela ainda está do lado dele e não posso permitir.

 É comigo que ela deveria estar e não com ele. — Você está errado. O lugar dela é ao lado dele. — Ela estava comigo. — Você os separou. Não era isso que ela queria. Há muito tempo eles se amam. Agora a vida resolveu que eles podem ficar juntos e você precisa conformar-se. — Não quero. Não vou permitir. — Terá que aceitar. Ela não está no seu destino. Seu caminho é outro. Por mais que tente, não conseguirá separá-los. Só vai arranjar mais sofrimento para todos vocês e no fim terá que se conformar. “Ninguém é melhor do que ninguém.

 Acontece que cada pessoa tem um destino a cumprir.” Ronaldo começou a soluçar e Angélica os olhava sem entender do que estavam falando. — Você deve ir embora para sempre, cuidar da sua vida. — É difícil fazer isso. Ele se escondeu nesse corpo, mudou de vida e custei a encontrá-lo. Ele não merece viver bem, roubou nosso dinheiro, nos enganou, não cumpriu nada do que nos prometeu. Não pode ficar impune. — Isso foi há muito tempo. Ele se arrependeu. Está trabalhando honestamente, tirando da terra seu sustento e faz mais. Vai receber todos vocês como filhos e sustentá-los pelo resto da vida. — Não quero ser filho dele. — É uma escolha sua. Mas ele está disposto a aceitá-lo. Depois Angélica será sua mãe.

 Não deseja estar perto dela? — É o que eu mais quero no mundo. Mas como posso ficar como filho sentindo essa paixão no coração? Como conviver com os dois vendo que se amam e eu a perdi? Vai ser um sofrimento que não poderei suportar. — Pense no que eu lhe disse. Saiba que de hoje em diante você não poderá ficar mais ao lado deles. Será afastado por ordem dos espíritos superiores que intercederam por eles e vão ajudá-los nesse trabalho de regeneração. Se não quiser nascer neste lar, não lhe restará outro caminho a não ser separar-se deles para sempre. — Não. Isso, não. Eu não vou suportar. — Você vai embora agora com nosso guia espiritual. Será levado para um lugar onde receberá ajuda e terá tempo de refletir. Ronaldo estremeceu e calou-se. Seu João colocou as mãos sobre a cabeça dele e orou em silêncio

. Depois fez o mesmo sobre a cabeça de Angélica. — Agora podem ir. Quero ver vocês de novo daqui a três dias. Ronaldo olhou - o hesitante. Angélica perguntou: — O que aconteceu aqui, seu João? Por que o Naldo disse aquelas coisas como se fosse outra pessoa? — Porque naquele momento quem estava falando através dele era mesmo outra pessoa. Eu estava conversando com o espírito que o estava incomodando. Ronaldo não se conteve: — Então tinha mesmo alma do outro mundo me atacando? Eu não disse? — É. Você disse. E agora, será que ela foi embora mesmo? — Vocês não conhecem nada sobre espiritualidade. — Não mesmo. Seu vigário explicou que as almas não têm permissão para vir incomodar os vivos, mas parece que se enganou — tornou Ronaldo. — Ele também não sabe tudo. Mesmo que conheça um pouco, não pode falar nisso.

 Tem que ensinar o que a Igreja manda. — Foi por isso que a mãe mandou vir falar com o senhor — emendou Angélica. — Eu costumo conversar com os espíritos. — Sempre tive medo — admitiu Ronaldo. — O senhor fala nisso com uma calma! Não sente medo? Seu João riu mostrando uma fileira de dentes amarelados pelo fumo. — Eles são pessoas que viveram neste mundo. Agora estão morando em outro lugar de onde vêm visitar e conversar com os vivos. — Então quem morre vai viver em outro lugar? — perguntou Ronaldo. — Vai. Deixa o corpo de carne, mas fica com o outro corpo que ele já tinha antes de nascer, do qual nunca se separa. Esse corpo é que vai fazer com que ele possa nascer de novo no mundo. — Quer dizer que quem morreu pode voltar a nascer aqui? — indagou Angélica, admirada. — Pode. Vocês têm um filho e é bom saber que ele já existia antes de nascer, que já viveu neste mundo mais de uma vez e voltou para aprender mais.

 A vida cuida de ensinar a todos nós como viver melhor. — Por isso eles voltam a viver aqui? — fez Ronaldo admirado. — Isso mesmo. — Quem era esse que estava me perseguindo? — Era um amigo seu de outras vidas. — Se fosse meu amigo, não me aparecia daquele jeito. — Ele estava com raiva de você por causa de coisas que aconteceram em suas vidas passadas. Angélica foi casada com ele. Ronaldo arregalou os olhos: — Casada com ele? Ela foi casada com outro? — Foi. E você também casou-se com outra. Mas vocês se amam de verdade e pediram a Deus para ficarem juntos.

 Vocês foram muito cultos e ricos, mas abusaram do poder. Antes de nascer aqui, arrependidos, pediram a Deus a chance de receber como filhos aqueles a quem prejudicaram e educá-los na honestidade, no trabalho. O lar de vocês será abençoado por muitos filhos. — É difícil acreditar que tudo isso seja verdade — disse Ronaldo, pensativo. Seu João riu e respondeu: — Mas é. Você vai descobrir. — Daqui para a frente o Ronaldo vai voltar a ser como antes? — perguntou Angélica. — Bom, esse que estava perturbando não vai voltar mais. 

No entanto, agora a porta foi aberta e outros vão querer se encostar nele. Por isso acho bom que venham aqui uma vez por semana para que eu possa ensinar como ficar bem. Então, Ronaldo, como se sente? — Leve. Parece que saiu um peso enorme de dentro de mim. Estou muito bemdisposto. — Graças a Deus, meu filho. Não se esqueça de agradecer a Deus. — E ao senhor, seu João. Nunca vamos esquecer o bem que nos fez. — Quanto é pela consulta? — tornou Ronaldo. — Não é nada, não. Quando se lembrar de mim, reze para Deus me ajudar. — Deus lhe pague, seu João — finalizou Ronaldo. — Amém — ajuntou Angélica. A partir daquele dia, Ronaldo mudou. 

Nunca mais teve o pesadelo, dormia bem, levantava-se cedo e em pouco tempo a plantação voltou a ficar verde. Logo os grãos brotaram e, quando chegou o tempo, o casal pôde pagar a seu Rogério o que lhe era devido. Continuaram visitando seu João uma vez por semana, tornaram-se amigos e, como ele havia previsto, os filhos começaram a chegar, um a um, enchendo a casa de alegria. Em meio a muitos amigos do casal, quando alguém contava casos de assombração, tentando amedrontar os presentes, Ronaldo interferia esclarecendo que as almas do outro mundo eram apenas pessoas sofredoras que tinham vivido aqui e estavam precisando de orações. Se alguém duvidava, ele contava a própria história a fim de que soubessem a verdade. Ele fazia isso com tal veemência e sinceridade que depois ninguém mais se atrevia a duvidar.

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