PROTEÇÃO E REALIDADE ***

 

Praticando a proteção caridosa, Uriel, entidade angélica, transportara Levindo para uma

colônia celestial, cheia de flores abertas e bonançosos ventos, onde almas laboriosas

descansavam da luta humana e trabalhavam pela conquista do porvir na esfera superior.

Levindo não cometera crimes que abalassem a opinião dos homens; entretanto, extraíra da

existência terrestre todos os proveitos e vantagens suscetíveis de favorecer as paixões

inferiores. Estragara, na mocidade, os melhores anos do corpo, perseverara nos prazeres

menos dignos em todo o curso da idade madura e, ainda na velhice precoce, fazia questão

de parecer um jovem da época, peralta e conquistador.

A moléstia do fígado retivera-o no leito, durante meses; contudo, não lhe atendia o enfermo

aos convites de meditarão e, longe de tratar convenientemente da enfermidade, lutou,

desesperado, contra a sua influenciarão invisível, bombardeando-a com venenos químicos

de variadas espécies. Duelava e reclamava, choramingando. Queria mais algum tempo na

Terra para solucionar alguns negócios, dizia em pranto. Precisava liquidar certos problemas

que a sua confiança no corpo adiara indefinidamente, mas o organismo exausto não lhe

satisfazia as solicitações. As células cansada enviavam à mente enérgico ultimato, exigindo

independência. Haviam servido, sem cessar, a um tirano que lhes não oferecera tréguas,

durante muitos anos de trabalho em comum.

Debalde, recorreu a remédios e providências.

Angustiado, Levindo recebeu a visita da morte numa noite escura e chuvosa, em que a

ventania lhe roçava a janela, como lamentoso soluço. Teve medo, experimentou o

inenarrável pavor do desconhecido e gritou estentoricamente. Todavia, seus gritos ecoavam

noutras dimensões e não atingiam, agora, os ouvidos familiares. A esposa chorava

copiosamente, beijando as mãos do seu corpo hirto, mostrando-se, porém, absolutamente

insensível aos seus abraços de náufrago, a debater-se num mar pesado de sombras.

Alguém, no entanto, velava por ele, com generosidade fraternal. Era Uriel, o amigo invisível.

Recolheu-o com ternura e cerrou-lhe as pálpebras num sono tranquilo. Que não pode fazer

no Universo o magnetismo divino do amor? Uriel amava o companheiro e, por isso, podia

protegê-la, envolvendo-o nos eflúvios de sua alma rica de luz.

O benfeitor deu-lhe, igualmente, uma rês, onde Levindo gozou abençoado sono de longas

horas.

Acordando, contemplou o amigo que o amparava em silêncio. O pobre companheiro,

recentemente desencarnado, crivou o mensageiro espiritual de perguntas e admoestações.

Como passavam a mulher e os filhos? A Providência devia recambiá-la ao mundo, com bastante possibilidade de resolver os seus interesses. Em verdade, poderia ter sido mais

previdente. Mas, como poderia saber? E a casa? E a organizarão comercial que lhe custara

incessantes desgostos? Estariam de acordo com os desejos dele?

Confortou-o Uriel, com palavras de esperança e amor, tentando tranqüilizá-lo.

Em seguida, usando a autoridade de que podia dispor, conduziu-o a encantadora cidade

espiritual, acolhedora e feliz, pequeno céu onde se congregavam espíritos libertos das

paixões inferiores, a caminho de sublime purificação.

O dedicado benfeitor apresentou-o aos companheiros. Todos julgaram tratar-se de alguém à

altura da luminosa expressão daquele paraíso de entendimento. Todavia, logo após as

primeiras saudações, Levindo revelava-se de maneira deprimente, perguntando, em

lágrimas, sobre situações, pessoas e coisas que haviam ficado, a distância, na luta material.

A um amigo do novo ambiente, que se identificava pelo nome de Almeida, indagou de antigo

devedor de sua organização comercial, que se fazia conhecer no campo terrestre pelo

mesmo nome, acrescentando que a dívida do infeliz encarnado montava a mais de cem mil

cruzeiros. O interpelado respondeu sorrindo:

– Quem sabe? É possível que esteja no quadro de meus antigos familiares. Somos tantos

Almeidas! entretanto, nada lhe posso adiantar agora. Deixei o sangue terreno, há muitos

anos!...

Provavelmente, Levindo desejaria reaver o dinheiro, embora fosse outra a moeda em

circulação.

Por mais que Uriel lhe aconselhasse serenidade e senso prático na nova situação,

continuava ele em estado de grave exaltação passional.

As brisas cariciosas e o divino céu inflamado de ouro e azul brilhante, as flores matizadas de

luz e as tôrres resplandecentes não conseguiam modificar-lhe a mente apaixonada pelas

sensações mais grosseiras da Terra. Se os amigos lhe recomendavam a oração, respondia,

em desespero:

– Como entregar-me à prece? Não posso.

Não sei como passam minha mulher, meus filhos, meus negócios. Como teriam sido

utilizados meus títulos bancários? E o inventário de meus bens? será que a partilha se

verificou justiceiramente?

E de rosto nas mãos crispadas, debulhava-se em pranto.

Qualquer conversação fraternal acabava em crises angustiosas.

Uriel esforçava-se em vão, até que, um dia, o grande orientador da comunidade espiritual

chamou-o delicadamente, falando-lhe com franqueza: – Uriel, você ama bastante a Levindo?

– Sim.

– Sabe, porem, que a proteção afetuosa somente pode dar resultados benéficos quando o

protegido compreende o benefício e deseja recebê-lo?

– Sei.

– Então, ouça: poderia ele permanecer aqui, em nosso recanto celeste, mas a mente do

infeliz airada está no inferno que se esforça por conservar indefinidamente, depois da morte

do corpo. Não intente violentar as leis evolutivas.

O benfeitor inclinou a cabeça em sinal de assentimento e permaneceu silencioso, enquanto

Levindo era chamado a outras providências.

Advertido pelo grande orientador, respondeu, chorando, que precisava regressar, que a

família humana carecia dele, que os negócios deviam estar parados, à sua espera, que

necessitava chamar os antigos devedores à prestação de contas. De qualquer modo,

desejava partir.

O dirigente da cidade entregou a Uriel uma chave e recomendou:

– Abra-lhe a porta e deixe-o procurar o que lhe pertence.

Nesse mesmo dia, cheio de esperança, Levindo precipitou-se no purgatório terrível, onde a

convivência com os demônios do mal lhe curaria a cegueira, com o sofrimento corretivo. 

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