- Salomão, o sábio rei dos israelitas, desde a célebre decisão, entre as duas mães que
disputavam o mesmo filho, no princípio de seu reinado, tornara-se famoso juiz, além de
soberano generoso e magnificente. Reverenciavam-no todas as tribos judaicas, abençoandolhe o nome e respeitando-lhe o poder. Em razão disso, além de suas pesadas atribuições
administrativas, era obrigado a atender a mil e uma questões dos súditos, que se
aproveitavam de sua sabedoria, nos casos da vida particular.
Assim começou a história o simpático ancião do plano superior, que nos visitava, a propósito
de certas preocupações que nos prendiam à Terra. Finda a longa pausa, durante a qual
conservou sobre os nossos o seu olhar muito lúcido, o velhinho prosseguiu:
- Foi assim que apareceu no reino uma questão estranha. A família de Natan, filho de
Belazel, morto desde muito tempo, recebeu alguns papiros, onde se liam mensagens
amigas, assinadas por ele, por intermédio de uma pitonisa de Jope, especializada em
relações com os espíritos dos mortos. Natan, que não mais pertencia ao mundo dos homens
de carne, tinha o cuidado de não interferir em qualquer assunto propriamente humano, para
não invadir a esfera de ação dos velhos amigos que deviam caminhar por si, aprendendo
com a própria experiência. Comentava as realidades espirituais, referindo-se, de maneira
velada, às situações e coisas do novo país a que fora chamado a viver. Entretanto, antigos
companheiros seus manifestaram-se absolutamente hostis. Impossível que Natan, patriarca
respeitável e amante da lei, voltasse do outro mundo escrevendo aos afeiçoados. Iniciaramse discussões em tom discreto. Negociantes de cabras e carneiros transportaram o assunto
de Jerusalém para a Arábia e da Arábia para a Fenícia.
Em vista das grandes dúvidas surgidas, encaminhou-se o problema ao esclarecido critério de
Salomão. Os descendentes de Natan exigiam o pronunciamento da Justiça, em sentença
insofismável.
O rei examinou o caso e esclareceu que precisava tempo para decidir. Sentia-se espantado.
Resolvera já muitos processos de herança e partilha, onde os mortos compareciam como
ausentes em definitivo e sem representantes legais, mas nunca lhe surgira um problema em
cuja solução devesse considerar direitos e obrigações daqueles que haviam atravessado o
horizonte sombrio da morte. Por isso, estudou e meditou dias e noites, ponderando sobre a
reclamação havida. Poderia, de fato, emitir um laudo declaratório? Como decidir uma
pendência em que havia partes interessadas no outro mundo? Seria razoável considerar
apenas o direito dos súditos vivos? E os súditos que haviam partido para a morte, confiantes
na Justiça do reino? O morto, certamente, havia dado o conteúdo dos papiros à pitonisa de
Jope, sem qualquer constrangimento, e por sua espontânea vontade. Seria crime obsequiar
alguém? Como impedir no mundo o sagrado direito de dar? Extinguir o intercâmbio da
amizade entre as almas seria o mesmo que interromper o curso das bênçãos divinas. Jeová,
o Magnânimo Senhor, não dava ao seu povo misericórdia e saúde, fortaleza e esperança
todos os dias?
Muitos áulicos do palácio exigiram-lhe perseguições à pitonisa, porque essa cometera a falta
de receber as dádivas de um amigo morto. Outros vieram rogar para que o rei poderoso e
sábio, ao invés de uma declaração, emitisse sentença condenatória. As supostas
mensagens, segundo a lei do Povo Escolhido, não passariam de miserável embuste.
Salomão, porém, sabia que, apesar da severa proibição do Deuteronômio, que vedava o
comércio com os mortos, Saul, antecessor de Davi, seu pai, fora consultar uma pitonisa em
Endor, antes da batalha de Gelboé, junto da qual recebera preciosas verdades do Espírito de
Samuel. Em são juízo, portanto, a ninguém podia condenar.
Corria o tempo sobre o assunto, quando o povo, sabendo que a Justiça abriria tribunais para
ouvir os mortos em suas decisões, começou a pedir audiências ao rei, suplicando-lhe a
interferência em seus casos privados. A viúva de Caleb, filho de Jefté, rogava que o esposo
falecido viesse renovar o testamento, expulsando os sobrinhos da velha propriedade. Eliezer,
filho de Josué, o coxo, queria que o Espírito de seu pai repartisse de novo os camelos, de
que o seu irmão Natanael se havia apropriado indebitamente. Jeroboão, velho patriarca da
tribo de Issacar, pediu que o grande juiz ouvisse sua mulher já falecida, relativamente aos
legados que pretendia deixar para os seus oito filhos. Efraim, filho de Matatias, o mercador
de jumentos, desejava que a alma de seu avô regressasse do Além para esclarecer a
situação do seu genitor deserdado pela cupidez dos parentes. E até Zarifa, mulher de
Jeremias, filho de Heber, veio suplicar uma informação do outro mundo, sobre quem seria o
pai de Ruth, a pequenina enjeitada à sua porta.
Salomão, por mais de trinta dias, concedeu audiências incessantes e recebeu as mais
estranhas rogativas, acabando por compreender que a Justiça Humana era organizada para
pessoas humanas e que, de modo algum, deveria invadir os extensos e misteriosos domínios
da Morte, sob pena de complicar todos os assuntos da vida, incentivando angústias e
tormentos da Humanidade.
Em razão disso, com grande surpresa para os súditos irrequietos, devolveu os papiros aos
descendentes de Natan, esclarecendo que a Justiça era um templo sagrado e não podia
constituir-se em órgão de consultas sem interesse fundamental para a vida dos homens.
Calara-se o ancião, mas nós outros, que lhe escutáramos a história, atentos à sua palavra
cheia de luz, indagamos, involuntariamente:
- Afinal, que disse o rei aos sábios de seu reino? No fundo, qual era, de fato, a sua opinião?
O velhinho sorriu com inteligência e acentuou:
- Salomão esclareceu aos áulicos e aduladores de seu palácio que respeitava Jeová e fazia
o culto da reta consciência; que a sua sabedoria não dava para descortinar o mistério do país
dos mortos; que se algum Espírito voltasse do túmulo a comunicar-se com as pessoas
terrestres, ninguém deveria preocupar-se com o seu nome e sim com a substância de suas
palavras, e que se o comunicante ensinava o bem devia ser considerado emissário dos Céus
e ouvido com atenção, e se transmitia o mal deveria ser interpretado como mensageiro do
Inferno e esquecido para sempre.
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