A GAROTINHA DAS CARTAS QUE NINGUÉM LIA*****

 

A GAROTINHA DAS CARTAS QUE NINGUÉM LIA

Na última rua de um bairro esquecido, havia uma pequena casa com pintura descascada e flores resistentes que brotavam do cimento. Ali vivia Luna, uma menina de 8 anos que usava um casaco vermelho mesmo nos dias quentes. Dizia que o casaco era mágico, porque guardava todos os seus segredos.

Luna escrevia cartas. Todos os dias. Cartas para pessoas que não conhecia, para árvores, para estrelas, e principalmente… para a mãe, que partira sem se despedir, levada por uma doença silenciosa e cruel.

Ela colocava as cartas numa caixa azul com uma tampa torta que deixava entrar o vento, esperando que alguém — talvez o universo — as lesse um dia.

O VIZINHO DA CASA CINZA

Do outro lado da rua morava o Sr. Arthur, um senhor recluso, de barba grande e passos lentos. Todos diziam que ele era rabugento, que falava com os pássaros e detestava crianças.

Mas Luna não acreditava nisso. Toda vez que ele saía para varrer as folhas da calçada, ela o cumprimentava com um aceno tímido. Ele nunca respondia — mas também nunca olhava com desprezo. E isso já era um começo.

Até que, num dia de vento forte, uma das cartas de Luna voou da caixa e foi parar aos pés de Arthur. Ele olhou, pegou o envelope branco com desenhos infantis e leu:

“Querida mamãe,

Hoje o céu estava bonito, e o vento parecia rir de mim. A senhora ainda pensa em mim? Eu deixei seu lugar à mesa.”

Arthur não sabia por que, mas aquela carta o fez tremer.

O DIÁLOGO EM PAPEL

No dia seguinte, Luna encontrou um envelope marrom na sua caixa azul. Estava escrito apenas:

“A saudade também é uma forma de amor.” — A.”

Ela sorriu. Pela primeira vez em muito tempo, sorriu de verdade.

Então começou o que ela chamava de "amizade de papel". Todos os dias, Luna escrevia uma carta — às vezes alegre, às vezes triste — e deixava na caixa. No dia seguinte, encontrava outra resposta.

Arthur contava coisas que nunca dissera a ninguém: sobre a esposa que perdera, sobre o filho com quem não falava mais, e sobre os silêncios que doíam tanto quanto as lembranças.

UM ENCONTRO SEM MEDO

Certa tarde, Luna não deixou carta nenhuma. Arthur, inquieto, atravessou a rua pela primeira vez em anos.

Encontrou a porta entreaberta e um silêncio diferente no ar. No sofá, estava Luna, com os olhos vermelhos, abraçando o casaco mágico.

— Ela era tudo que eu tinha… — disse baixinho. — Mas agora eu tenho as cartas. As suas também.

Arthur se sentou ao lado dela. Não disse nada. Apenas segurou sua mão pequena com firmeza.

Daquele dia em diante, os dois passaram a se encontrar na varanda todas as tardes. Ela desenhava, ele escrevia. Às vezes apenas ficavam ali, olhando o céu como quem espera que ele responda alguma coisa.

A CAIXA QUE VIROU PONTE

Meses depois, Luna organizou uma pequena exposição na escola. Era chamada de "Cartas para Quem Precisa Ouvir". E lá estavam as trocas com Arthur — anônimas, mas universais.

A caixa azul foi colocada no centro do salão. Crianças, pais, professores... todos foram convidados a deixar cartas para alguém que já se foi ou que nunca teve coragem de ouvir.

Arthur? Estava lá, na primeira fila. Chorando.

E ao final da apresentação, Luna o abraçou e cochichou:

— O senhor fez meu casaco realmente mágico. Porque agora ele guarda amor que voltou.

EPÍLOGO: A CORAGEM EM CADA LETRA

Anos depois, Luna tornou-se psicóloga e escritora. Sua especialidade? Ajudar crianças a falarem do que não conseguem dizer em voz alta. Em cada sala de atendimento, há uma caixa azul — e sempre há papel e lápis à disposição.

Arthur viveu até os 92 anos. Nunca mais se sentiu sozinho.

No túmulo dele, Luna deixou a primeira carta que ele lhe escreveu. E sussurrou:

“Agora eu entendo. Saudade é mesmo uma forma de amor que continua.”


Denise Galvão

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