O consultório da Dra. Helena Duarte cheirava a giz de cera e jasmim. As paredes, cobertas de desenhos coloridos, pareciam sorrir para quem entrava. Mas havia uma parte do lugar — um pequeno canto perto da janela — onde o ar era diferente, como se ali o tempo ainda guardasse um segredo.
Helena tinha trinta e sete anos, olhos serenos e um sorriso que inspirava confiança. Era a psicóloga infantil mais requisitada da cidade, a “doutora que faz as crianças voltarem a falar”, como diziam as mães. Só ela sabia o preço disso.
À noite, quando o silêncio voltava e as vozes das crianças desapareciam, Helena acordava com o coração disparado. Às vezes, sonhava com um barulho de vidro quebrando. Outras vezes, apenas com uma porta batendo — aquela porta.
Ela tinha sete anos quando tudo se partiu.
O pai, um homem de temperamento volátil, bebia demais. A mãe, doce e frágil, tentava esconder os m@chucados com lenços e mentiras.
Numa noite de chuva, Helena acordou com gritos na sala. O som de algo caindo. Uma cadeira? Ela correu até o corredor, e o pai, de olhos vermelhos, a empurrou de volta para o quarto.
— Fica aí, Lena! — ele berrou. — Fica quieta!
Ela obedeceu. Se encolheu debaixo da cama, abraçada ao travesseiro. Ouvia os passos, o choro da mãe, depois o silêncio.
No dia seguinte, a mãe tinha ido “visitar a avó”, disseram os vizinhos. Mas Helena sabia — sabia no fundo da alma — que a mãe não voltaria nunca mais.
O pai foi pr3so meses depois, e ela cresceu em um lar adotivo. Nunca falou sobre aquela noite. Nunca contou a ninguém o que viu — ou o que acreditava ter visto.
A dor foi trancada num cofre de lembranças, e, sobre ele, ela construiu sua profissão: salvar outras crianças daquilo que ela mesma não conseguiu escapar.
Lucas chegou ao consultório numa terça-feira de vento. Oito anos, olhar desconfiado. A avó segurava sua mão com força.
— Ele não fala desde que a mãe... — ela parou, sem conseguir completar. — Desde o que aconteceu.
Helena apenas assentiu. Sabia que a dor não precisa de explicações.
Nas primeiras sessões, Lucas só desenhava. Casas partidas, portas trancadas, janelas fechadas. E, sempre, no canto do papel, uma pequena figura: um menino escondido debaixo da cama.
Helena sentiu um arrepio. Reconheceu aquele medo.
— Posso sentar aqui com você? — perguntou, tentando parecer tranquila.
Lucas assentiu, mas não falou nada.
Nos dias seguintes, ela começou a trazer brinquedos de madeira, contar histórias sobre coragem e esconderijos seguros. Aos poucos, o menino começou a erguer o olhar.
Até que, numa tarde chuvosa, ele sussurrou:
— Ela não vai mais voltar.
Helena congelou. As palavras ecoaram dentro dela como um feitiço quebrando. Lágrimas brotaram, silenciosas.
— Às vezes... — ela respirou fundo. — Às vezes as pessoas se perdem no escuro. Mas isso não é culpa de quem ficou esperando a luz acender.
Lucas a observou em silêncio, e, pela primeira vez, esboçou um sorriso pequeno, quase um sopro.
Na sessão seguinte, ele desenhou o mesmo quarto — mas, dessa vez, com a porta aberta e uma mulher segurando uma lanterna.
Naquela noite, Helena foi até o sótão de casa. Abriu uma velha caixa de lembranças e encontrou uma foto da mãe: sorrindo, viva, antes do medo.
Ficou ali, em silêncio, até que a dor finalmente chorou por dentro dela — mas agora de um jeito manso, como chuva lavando uma vidraça antiga.
Pegou papel e caneta, e escreveu uma carta.
"Menina Helena, você não precisa mais se esconder. A mamãe te perdoa. E eu também."
Quando terminou, percebeu que o peito estava leve. Pela primeira vez em trinta anos, dormiu sem pesadelos.
Meses depois, publicou um livro: “A Curadora de Almas Perdidas”.
Na dedicatória, escreveu:
"Para todas as crianças que um dia se esconderam do medo. E para as que aprenderam a abrir a porta."
O livro virou referência entre terapeutas e mães. Mas, para Helena, o verdadeiro prêmio foi outro: numa tarde qualquer, Lucas entrou no consultório e disse, sorrindo:
— Doutora, acho que não preciso mais desenhar portas.
Ela riu, os olhos marejados.
— Então desenhe janelas.
E foi assim que a mulher que curava as dores alheias encontrou, enfim, o caminho para curar a sua própria alma.
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