Todos quantos laboram em favor do homem da Terra esbarram nos muros indevassáveis da
Sombra. O Cristo foi o único que espalhou, na masmorra da carne, uma claridade suave,
porque não se dirigiu à criatura terrena, mas à criatura espiritual.
Assombrava-me o espetáculo pavoroso do mundo, onde as leis, liberalíssimas para a
aristocracia do ouro e severas em face dos infortunados que palmilham o caminho espinhoso
com os pés descalços e feridos, refletem o caráter humano com os seus incorrigíveis
defeitos.
E, despertando de longos pesadelos na porta de claridade da sepultura, a minha primeira
inquirição, com respeito aos problemas que me atormentavam, foi uma pergunta dolorosa
acerca dos contrastes amargos do mundo. Ainda aqui, porém, os gênios carinhosos da
Sabedoria abençoam, a sorrir, os que os interpelam, porque a decifração dos enigmas das
nossas existências está em nós mesmos. Apesar do destino inflexível, há uma força em nós
que dele independe, como origem de todas as nossas ações e pensamentos. Somos
obreiros da trama caprichosa das nossas próprias vidas. As mãos, que hoje cortam as
felicidades alheias, amanhã se recolherão como galhos - ressequidos nas frondes verdes da
Vida. As iniqüidades de um Herodes podem desaparecer sob o manto de renúncias de um
Vicente de Paulo. O sensualismo de Madalena foi expurgado nos prantos amargosos da
expiação e do arrependimento. Quando pudermos ver o passado em todo o seu
desdobramento, depois de contemplarmos a Messalina em sua noite de regalados prazeres,
vê-la-emos de novo, arrastando-se nas margens do Tibre, enfiada num vestido horripilante
de negras monstruosidades.
Faltou-me na vida terrena semelhante compreensão, para entender a Verdade.
Que essa pobre mãe maranhense considere esses realismos que nos edificam e nos salvam.
E, como um anjo de Dor à cabeceira do seu filho, eleve o seu apelo ao coração augusto
d’Aquele que remove as montanhas com o sopro suave do seu amor. Sua oração subirá ao
Infinito como um cálice de perfume derramado ao clarão das estrelas que enfeitam o trono
invisível do Altíssimo, e, certamente, os anjos da Piedade e da Doçura levarão a sua prece,
como cândida oferta da sua alma sofredora, à magnanimidade daquela que foi a Rosa
Mística de Nazaré. Então, nesse momento, talvez que o coração angustiado da mãe que
chora, na Terra, se ilumine de uma claridade estranha e misericordiosa. Seu lar desditoso e
humilde será, por instantes, um altar dessa luz invisível para os olhos mortais. Duas mãos de
névoa translúcida pousarão como açucenas sobre a sua alma oprimida e uma voz carinhosa,
embaladora, murmurará aos seus ouvidos:
"Sim, minha filha!... ouvi a tua prece e vim suavizar o teu martírio, porque também tive um
filho que morreu ignominiosamente na cruz."
sábado, 16 de novembro de 2024
CORAÇÃO DE MÃE
Dolorosa e comovedora é a carta dessa mulher maranhense que te chegou às mãos, trazida
nas asas de um avião trepidante e ruidoso.
Mãe desesperada, apela para os sentimentos de paternidade que não me abandonaram no
túmulo, e grita aflitivamente corno se as suas letras tremidas fossem vestígios arroxeados do
sangue do seu coração:
“Eu peço a Humberto de Campos que, mesmo do Além, salve o meu filho”! Ele, que não se
esqueceu dos que deixou na Terra, não pode negar urna esmola à minha alma de mãe
extremosa!
E eu me lembro, comovido, dos apelos que me eram dirigidos pelos sofredores, nos
derradeiros tempos da minha vida, enquanto eu naufragava devagarzinho no veleiro da Dor,
entre as águas pesadas do oceano da Morte.
Eu daria tudo para enviar, a essa mulher sofredora da terra que foi minha, a certeza de que o
seu filho é uma criatura predileta dos deuses. Tudo faria para imitar aquelas mãos ternas e
misericordiosas que descansaram sobre a fronte abatida do órfão da viúva de Naim,
ressuscitando para um coração maravilhoso de Mãe as energias do filho que padece sob as
provações mais penosas.
A Morte, porém, não afasta do nosso caminho a visão estranha da fatalidade e do destino.
Há um determinismo no cenário das nossas existências, criado por nós mesmos. O mal, com
o seu cortejo de horrores, não está dentro dessa corrente impetuosa e irrefreável, mas todos
os seus elos são formados pelos sofrimentos.
Os homens de barro têm de batalhar a vida inteira, repelindo o Crime e o Pecado, mas
inevitavelmente andarão atolados no pantanal da Dor e da Morte.
O que mais me pungia, depois de haver perquirido as lições dos sábios daí, era a inutilidade
dos seus argumentos ante as determinações irrevogáveis do destino. Após haver
atravessado as estradas da ignorância despretensiosa, no limiar do imenso palácio das
experiências alheias, presumia encontrar a solução dos enigmas que confundem o cérebro
humano. Mas, em todas achei o mesmo tormento, as mesmas ansiedades angustiosas.
Frente a frente ao pulso inflexível da Morte, toda a ciência do mundo é de uma insignificância
irremediável. Nesse particular, todo o portentoso edifício da filosofia de Pitágoras não valia
mais que as extravagantes teorias doutrinárias propaladas no mundo.
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