quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Fora da Caridade não há salvação

"Tudo o que fizermos pelos nossos irmãos gravar-se-á no grande livro fluídico, cujas páginas se expandem através do espaço, páginas luminosas onde se inscrevem nossos atos, nossos sentimentos, nossos pensamentos. E esses créditos ser-nos-ão regiamente pagos nas existências futuras..."

 
A CARIDADE
Leon Denis
 
Ao encontro das religiões exclusivistas, que tomaram por preceito: Fora da Igreja não há salvação, como se, pelo seu ponto de vista puramente humano, pudessem decidir da sorte dos seres na vida futura, Allan Kardec colocou as seguintes palavras no frontispício das suas obras: Fora da caridade não há salvação. Efetivamente, os Espíritos ensinam-nos que a caridade é a virtude por excelência e que só ela nos dá a chave dos destinos elevados.
“É necessário amar os homens”, assim repetem eles as palavras em que o Cristo havia condensado todos os mandamentos da lei moisaica.
Mas, objetam, os homens não se amam. Muita maldade aninha-se neles, e a caridade é bem difícil de praticar a seu favor.
Se assim os julgamos, não será porque nos é mais agradável considerar unicamente o lado mau de seu caráter, de seus defeitos, paixões e fraquezas, esquecendo, muitas vezes, que disso também não estamos isentos, e que, se eles têm necessidade da nossa caridade, nós não precisamos menos da sua indulgência?
Entretanto, não é só o mal que reina no mundo. Há no homem também boas qualidades e virtudes, mas há, sobretudo, sofrimentos. Se desejarmos ser caritativos, como devemos sê-lo em nosso próprio interesse e no da ordem social, não deveremos inclinar-nos a apreciações sobre os nossos semelhantes, à maledicência, à difamação; não deveremos ver no homem mais que um companheiro de provas ou um irmão na luta pela vida, Vejamos os males que ele sofre em todas as classes da sociedade. Quem não oculta um queixume, um desgosto no fundo da própria alma; quem não suporta o peso das mágoas, das amarguras? Se nos colocássemos neste ponto de vista para considerar o próximo, em breve nossa malquerença transformar-se-ia em simpatia.
Ouvem-se, por exemplo, muitas vezes, recriminações contra a grosseria e as paixões brutais das classes operárias, contra a avidez e as reivindicações de certos homens do povo. Reflete-se então maduramente sobre a triste educação recebida, sobre os maus exemplos que os rodearam desde a infância? A carestia da vida, as necessidades imperiosas de cada dia impõem-lhes uma tarefa pesada e absorvente. Nenhum descanso, nenhum tempo existe para esclarecer-lhes a inteligência. São-lhes desconhecidas as doçuras do estudo, os gozos da arte. Que sabem eles sobre as leis morais, sobre o seu próprio destino, sobre o mecanismo do Universo? Poucos raios consoladores se projetam nessas trevas. Para esses, a luta terrível contra a necessidade é de todos os instantes. A crise, a enfermidade e a negra miséria os ameaçam, os inquietam sem cessar. Qual o caráter que não se exasperaria no meio de tantos males? Para suportá-los com resignação é preciso um verdadeiro estoicismo, uma força dalma tanto mais extraordinária quanto mais instintiva for. Em vez de atirar pedras contra esses infortunados, empenhemo-nos em aliviar seus males; em enxugar suas lágrimas, em trabalhar com ardor para que neste mundo se faça uma distribuição mais eqüitativa dos bens materiais e dos tesouros do pensamento. Ainda não se conhece suficientemente o valor que podem ter sobre esses infelizes uma palavra animadora, um sinal de interesse, um cordial aperto de mão. Os vícios do pobre desgostam-nos e, entretanto, que desculpa ele não merece por causa da sua miséria! Mas, em vez de desculpá-los, fazemos por Ignorar suas virtudes, que são muito mais admiráveis pelo simples fato de surgirem do lodaçal.
Quantas dedicações obscuras entre esses pobres! Quantas lutas heróicas e perseverantes contra a adversidade! Meditemos sobre as inumeráveis famílias que medram sem apoio, sem socorro; pensemos em tantas crianças privadas do necessário, em todas essas criaturas que tiritam de frio e fome dentro de úmidos e sombrios albergues ou nas mansardas desoladas. Quantos encargos para a mulher do povo, para a mãe de família em tais condições, assim que o inverno cobre a terra, quando a lareira está sem fogo, a mesa sem alimentos e o leito gelado, com farrapos substituindo o cobertor vendido ou hipotecado em troca de um bocado de pão! Seu sacrifício não será de todos os momentos? E, no entanto, seu pobre coração comove-se à vista das dores do próximo! Não deveria o ocioso opulento envergonhar-se de ostentar riquezas no meio de tantos sofrimentos? Que responsabilidade esmagadora para ele, se, no seio da sua abundância, esquece esses a quem oprime!
Sem dúvida, muitas coisas repugnantes, muitas imundícies misturam-se às cenas da vida dessas criaturas. Queixumes e blasfêmias, embriaguez e alcovitice, crianças desapiedadas e pais cruéis, todas essas deformidades aí se confundem; mas, ainda assim, sob esse exterior repelente, é sempre a alma humana que sofre, a alma nossa irmã, cada vez mais digna de interesse e de afeição.
Arrancá-la desse pântano lodoso, reaquecê-la, esclarecê-la, fazendo-a subir de degrau em degrau a escada da reabilitação, eis a grande tarefa! Tudo se purifica ao fogo da caridade. Era esse logo que abrasava o Cristo, Vicente de Paulo, Fénelon e muitos outros. Era no seu Imenso amor pelos fracos e desamparados que também se encontrava a origem da sua abnegação sublime.
Sucede o mesmo com todos os que têm a faculdade de muito amar e de muito sofrer. Para eles, a dor é como que uma iniciação na arte de consolar e aliviar os outros. Sabem elevar-se acima dos seus próprios males para só verem os de seus semelhantes e para procurar remediá-los. Daí, os grandes exemplos dessas almas eminentes que, assediadas por tormentos, por agonia dolorosa, encontram ainda os meios de curar as feridas dos que se deixam vencer no combate da vida.
A caridade, porém, tem outras formas pelas quais se exerce, independente da solicitude pelos desgraçados. A caridade material ou a beneficência podem aplicar-se a certo número dos nossos semelhantes, sob a forma de socorro, apoio e animação. A caridade moral deve abranger todos os que participam da nossa existência neste mundo. Não mais consiste em esmolas, porém, sim, numa benevolência que deve envolver todos os homens, desde o mais bem dotado em virtude até o mais criminoso, e bem assim regular as nossas relações com eles.
A verdadeira caridade é paciente e indulgente. Não se ofende nem desdenha pessoa alguma; é tolerante e, mesmo procurando dissuadir, o faz sempre com doçura, sem maltratar, sem atacar idéias enraizadas.
Esta virtude, porém, é rara. Um certo fundo de egoísmo leva-nos, muitas vezes, a observar, a criticar os defeitos do próximo, sem primeiro repararmos nos nossos próprios. Existindo em nós tanta podridão, empregamos ainda a nossa sagacidade em fazer sobressair as qualidades ruins dos nossos semelhantes. Por Isso não há verdadeira superioridade moral, sem caridade e modéstia. Não temos o direito de condenar nos outros as faltas a que nós mesmos estamos expostos; e, embora a elevação moral já nos tenha isentado dessas fraquezas, devemos lembrar-nos de que tempo houve quando nos debatíamos contra a paixão e o vicio.
Há poucos homens que não tenham maus hábitos a corrigir, Impulsos caprichosos a modificar. Lembremo-nos de que seremos julgados com a mesma medida de que nos servirmos para com os nossos semelhantes. As opiniões que formamos sobre eles são quase sempre reflexo da nossa própria natureza. Sejamos mais prontos a escusar do que a censurar. Muitas vezes nos arrependemos de um julgamento precipitado. Evitemos, portanto, qualquer apreciação pelo lado mau.
Nada é mais funesto para o futuro da alma do que as más intenções, do que essa maledicência Incessante que alimenta a maior parte das conversas. O eco das nossas palavras repercute na vida futura, a atmosfera dos nossos pensamentos malignos forma uma espécie de nuvem em que o Espírito é envolvido e obumbrado. Abstenhamo-nos dessas criticas, dessas apreciações dolosas, dessas palavras zombeteiras que envenenam o futuro. Acautelemo-nos da maledicência como de uma peste; retenhamos em nossos lábios qualquer palavra mordaz que esteja prestes a ser proferida, porque de tudo Isso depende a nossa felicidade.
*
O homem caridoso faz o bem ocultamente; e, enquanto este encobre as suas boas ações, o vaidoso proclama o pouco que faz. “Que a mão esquerda ignore o que faz a direita”, disse Jesus. “Aquele que fizer o bem com ostentação já recebeu a sua recompensa.”
Beneficiar ocultamente, ser Indiferente aos louvores humanos, é mostrar uma verdadeira elevação de caráter, é colocar-se acima dos julgamentos de um mundo transitório e procurar a justificação dos seus atos na vida que não acaba.
Nessas condições, a ingratidão e a Injustiça não podem atingir aquele que fora caritativo. Ele faz o bem porque é do seu dever e sem esperar nenhuma recompensa. Não procura auferir vantagens; deixa à lei o cuidado de fazer decorrer as conseqüências dos seus atos, ou, antes, nem pensa nisso. É generoso sem cálculo. Para tornar-se agradável aos outros, sabe privar-se do que lhe é necessário, plenamente convencido de que não terá nenhum mérito dispondo do que for supérfluo.
Eis por que o óbolo do pobre, o denário da viúva, o pedaço de pão que o proletário divide com seu companheiro de infortúnio têm mais valor que as larguezas do rico. Há mil maneiras de nos tornarmos úteis, de irmos em socorro dos nossos irmãos. O pobre, em sua parcimônia, pode ainda ir em auxílio de outro mais necessitado do que ele. Nem sempre o ouro seca todas as lágrimas ou cura todas as feridas. Há males sobre os quais uma amizade sincera, uma ardente simpatia ou uma afeição operam melhor que todas as riquezas.
Sejamos generosos com esses que têm sucumbido na luta das paixões e foram desviados para o mal, sejamos liberais com os pecadores, com os criminosos e endurecidos. Porventura sabemos quais as fases cruéis por que eles passaram, quais os sofrimentos que suportaram antes de falir? Teriam essas almas o conhecimento das leis superiores como sustentáculo na hora do perigo? Ignorantes, irresolutas, agitadas pelo sopro da desgraça, poderiam elas resistir e vencer? Lembremo-nos de que a responsabilidade é proporcional ao saber e que muito será pedido àquele que já possui o conhecimento da verdade. Sejamos piedosos para com os que são pequenos, débeis ou aflitos, para com esses a quem sangram as feridas da alma ou do corpo. Procuremos os ambientes onde as dores fervilham, os corações se partem, onde as existências se esterilizam no desespero e no esquecimento. Desçamos aos abismos da miséria, a fim de levar consolações animadoras, palavras que reconfortem, exortações que vivifiquem, a fim de fazer luzir a esperança, esse sol dos infelizes. Esforcemo-nos por arrancar daí alguma vítima, por purificá-la, salvá-la do mal, abrir-lhe uma via honrosa. Só pelo devotamento e pela afeição encurtaremos as distâncias e preveniremos os cataclismos sociais, extinguindo o ódio que transborda do coração dos deserdados.
Tudo o que fizermos pelos nossos irmãos gravar-se-á no grande livro fluídico, cujas páginas se expandem através do espaço, páginas luminosas onde se inscrevem nossos atos, nossos sentimentos, nossos pensamentos. E esses créditos ser-nos-ão regiamente pagos nas existências futuras.
Nada fica perdido ou esquecido. Os laços que unem as almas na extensão dos tempos são tecidos com os benefícios do passado. A sabedoria eterna tudo dispôs para bem das criaturas. As boas obras realizadas neste mundo tornam-se, para aquele que as produziu, fonte de infinitos gozos no futuro.
A perfeição do homem resume-se a duas palavras:
Caridade e Verdade. A caridade é a virtude por excelência, pois sua essência é divina. Irradia sobre os mundos, reanima as almas como um olhar, como um sorriso do Eterno. Ela se avantaja a tudo, ao sábio e ao próprio gênio, porque nestes ainda há alguma coisa de orgulho, e às vezes são contestados ou mesmo desprezados. A caridade, porém, sempre doce e benevolente, reanima os corações mais endurecidos e desarma os Espíritos mais perversos, inundando-os com o amor.
 
LEON DENIS
(Do livro "Depois da Morte", 47)

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